cena da novela “A Dona do Pedaço” |
Nas duas novelas da faixa nobre das maiores emissoras do Brasil, Globo e Record, dois dramas semelhantes: as personagens femininas vão engravidar, fazer aborto em clínicas clandestinas e morrer.
Trazer um assunto polêmico como esse à tona na TV pode suscitar uma discussão construtiva e enriquecedora. Rodrigo Casemiro, psicólogo junguiano e dramaturgo acredita que, se a TV aborda um assunto polêmico, traz esclarecimento de informações e criação de empatia pelo outro. “Quando o personagem assume uma voz, a população se identifica”.
“Geralmente, a novela traz essas duas visões. É fácil julgar sem estar passando pela situação. Mas quem está na situação, quer acolhimento”, diz ele, que acredita que as cenas podem fazer com que o público compreenda a situação.
Além disso, Casemiro lembra que em lugares muito afastados do Brasil, muitas pessoas não têm acesso a informações — o que também pode acontecer nos grandes centros. Mas pelo menos uma televisão na sala, quase todo mundo tem.
“Quando a novela traz um assunto desse, está mexendo numa camada muito profunda de conceitos e preconceitos da sociedade. É interessante, por que causa essa fricção de opiniões, esse debate”, conclui o psicólogo.
Por que falar sobre aborto é importante?
“O aborto é um fato na vida reprodutiva das mulheres”, crava a professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), médica ginecologista e obstetra Helena Borges Martins da Silva Paro. Ela também é coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual do Hospital de Clínicas da cidade mineira.
A declaração incisiva da especialista está baseada nos dados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2016. O documento mostra que o aborto é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões. Para se ter uma ideia, segundo o estudo, naquele ano, praticamente 1 em cada 5 mulheres de até 40 anos já havia realizado pelo menos um aborto.
Em 2015, foram, aproximadamente, 416 mil mulheres. De acordo com o relatório há, no entanto, maior frequência do aborto entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. “Como já mostrado pela PNA 2010, metade das mulheres utilizou medicamentos para abortar, e a outra parte precisou ficar internada para finalizar o aborto”, ela diz.
De acordo com a especialista, no Brasil, é a 3ª causa mais frequente de morte materna. Já o aborto seguro e legalizado, feito com apoio e orientação de uma equipe de saúde, tem 14 vezes menos risco de morte do que um parto, segundo levantamentos apontados por ela. A descriminalização, então, seria uma das maneiras se de evitar essas mortes.
“No Brasil, sofre quem faz o aborto inseguro: quem não tem acesso a uma clínica clandestina, ou dinheiro para a compra de medicação clandestina — que é barata, mas por ser ilegal, acaba sendo traficada a preços exorbitantes. São as mulheres de uma classe social mais baixa e da cor preta as que mais morrem”, ela declara.
Como alternativas, ela cita a educação sexual nas escolas. “Isso para que todas as pessoas — homens e mulheres — estejam conscientes de métodos contraceptivos seguros para exercício da atividade sexual com liberdade e autonomia”, opina a professora. O assunto, no entanto, divide a opinião pública e há quem defenda que não se deva falar disso na sala de aula.
Ela exemplifica com resultados da Romênia. Nos anos 60, o governo ditatorial proibiu métodos contraceptivos e aborto porque havia um preocupação muito grande com a baixa natalidade: a população estava diminuindo. O resultado foi um grande aumento da mortalidade materna.
Sem amparo da lei, mulheres que não vêem outra alternativa senão o aborto acabam realizando procedimentos como introdução de objetos pontiagudos na vagina — cabides, agulhas ou até mesmo talo de mamona. Quando não morrem, acabam tendo infecções graves no útero que causam infertilidade.