Quando apareceram as primeiras denúncias de abuso sexual contra o médium João de Deus, de Abadiânia (GO), no final do ano passado, um grupo de promotoras públicas de São Paulo criou o email [email protected] e foi às redes sociais em busca de relatos de mulheres vítimas do líder religioso no estado.
Com a hashtag #justicadesaia, a promotora Gabriela Manssur recebeu 200 denúncias nas 48 horas seguintes. Numa espécie de força-tarefa, Manssur e suas colegas ouviram mais de 50 vítimas e encaminharam os casos para Goiás, onde João de Deus foi preso e denunciado [acusado formalmente] à Justiça.
Mesmo os relatos de atos já prescritos judicialmente serviram para que se desenhasse a forma como João de Deus agiu por décadas. As histórias das vítimas, muitas das quais haviam buscado o médium atrás de ajuda contra doenças terminais, deixaram revoltada a experiente Silvia Chakian, que tem 20 anos de Ministério Público.
“Nunca ouvi relatos tão doloridos e de condutas tão perversas praticados contra uma mulher no momento de maior vulnerabilidade de sua vida. Eu chegava em casa me sentindo muito mal”, afirma Chakian.
A hashtag #justicadesaia usada para ouvir as vítimas de João de Deus, acabou se tornando um canal para denúncias contra outros líderes espirituais — e também de outros profissionais que deveriam atuar no aconselhamento ou atendimento de mulheres, como coachs, médicos, fisioterapeutas e professores.
Manssur e Chakian fazem parte de um dos grupos do Ministério Público mais atuante na defesa de mulheres vítimas de toda sorte de violência: a Promotoria de Enfrentamento à Violência Doméstica.
Oficializada em 2016, a promotoria tem hoje 20 promotores (incluindo 7 homens) e 44 funcionários, distribuídos em oito unidades na capital. Além de atuar em milhares de processos, a maioria contra maridos/namorados agressores e estupradores, as promotoras da Violência Doméstica trabalham com a prevenção.
O BuzzFeed News acompanhou o trabalho e entrevistou nove promotoras que atuam no enfrentamento da violência muito antes de o grupo ser transformado em Promotoria. Chakian, que trabalha na Vara de Violência Doméstica da Barra Funda, é uma das fundadoras. Com a colega Fabiana Dal Maes, ela ajudou na condenação de Lírio Parisotto, ex-marido da modelo Luiza Brunet, por agressão.
Apenas ali, na Barra Funda, Dal Maes, Chakian e um promotor dividem 1.700 ações penais e mais de 4.200 processos de investigação. “A parte mais difícil é convencer o juiz de que o agressor é o réu”, diz Dal Maes. Isso porque, diferentemente de outras situações de crime, o agressor costuma ser uma pessoa que aparente não levantar suspeitas e que apresenta testemunhas de que é um cidadão comum.
“Obrigada por dizer que eu não tenho culpa”
Decorada com flores, espelhos, quadros e poltronas clássicas, a sala do Núcleo de Gênero do Ministério Público (MP), no centro de São Paulo, destoa da impessoalidade dos outros gabinetes. A promotora de Justiça Valéria Scarance conta que trouxe as peças de decoração de casa para que as mulheres que venham relatar seus problemas se sintam mais acolhidas.
Scarance é uma das fundadoras, há dez anos, do núcleo de promotoras vocacionadas para o enfrentamento da violência contra a mulher. De núcleo, a equipe ganhou o status de Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid), até se tornar a Promotoria de Enfrentamento à Violência Doméstica. Hoje auxiliando a Procuradoria-Geral de Justiça do Estado nas questões de gênero, Scarance conta que o que move seu trabalho é poder ouvir das vítimas: “Você me ajudou ao dizer que eu não tenho culpa”.
A mulher vítima, diz ela, não busca apenas o acolhimento da Justiça. Ela quer respostas e, por isso, as promotoras se desdobram no entendimento sobre a dinâmica da violência e do que leva uma mulher a passar, continuamente, pelas fases de “tensão, explosão e lua de mel” em seus relacionamentos.
“É a síndrome do desamparo aprendido”, diz ela, afirmando que a mulher fica tão condicionada a essa situação que não encontra forças para sair dela. São fatores que deixam a mulher presa a esse relacionamento: a impotência, a fase da lua de mel (quando o parceiro agressor se diz arrependido e a dinâmica entre os dois melhora), a vergonha, a culpa e a revitimização.
Ali, entre as promotoras da Violência Doméstica, não se julga o comportamento da vítima. Inclusive daquelas que mudam seus depoimentos e se retratam. Para as promotoras, aquelas são as mulheres que mais precisam de ajuda porque a retratação, na maioria dos casos, esconde o medo delas e a ameaça dos agressores.
As promotoras do caso Neymar
Em outro ponto da cidade, em Santo Amaro, três promotoras dividem o acompanhamento da denúncia de estupro feita pela modelo Najila Trindade contra o jogador Neymar.
A repercussão do caso alçou Estefânia Paulin, Kátia Peixoto e Flávia Merlini à condição involuntária de quase celebridades. Para elas, ainda é um aprendizado para lidar com a imprensa.
Depois do depoimento de Neymar, a promotora Flávia Merlini afirmou diante das câmeras que o testemunho havia sido “satisfatório”. Ela queria dizer que Neymar respondeu a todas as perguntas, “sem evasivas”. Mas parte da imprensa entendeu que o “satisfatório” como “plausível”. Para se corrigir, na semana seguinte, ao acabar o depoimento de Najila Trindade, a promotora usou o mesmo adjetivo: “satisfatório”.
“Estamos nos preservando. A gente não fica gravitando em torno disso [a repercussão]. E já dissemos que vamos atuar sem paixões e sem bandeiras”, diz Flávia Merlini.
É uma situação nova para três promotoras que se debruçam quase sozinhas, diariamente, sobre uma pilha de processos que tratam de violência doméstica. São 22.500 apenas em Santo Amaro.
Estefânia Paulin conta que, desde que apareceu em entrevistas do caso, recebeu muitas cantadas de homens pelo Instagram, o que ela achou inconveniente. Ao saber do assédio de “fãs”, a promotora Nathalie Malveiro exclama: “Eu só recebo ameaças!”
Depois de três anos na Violência Doméstica, Malveiro trabalha na Corregedoria do Ministério Público. Seu papel é orientar outras promotorias nas localidades onde não há promotores especializados em violência doméstica para que estejam aptos a lidar com as mulheres vítimas de agressão.
Muitos promotores se chateiam com as idas e vindas nos casos desse tipo de crime porque muitas vítimas desistem das acusações no meio dos processos.
Ela explica que esse comportamento faz parte da dinâmica desse tipo de violência. “Quando você entende essa dinâmica, você vê que vítima que volta atrás [na denúncia] é a que mais precisa de você”, diz ela.
Vítima foi obrigada a comer uma cartilha
Veterana no Gevid (como ainda é chamada a Promotoria), Fabíola Sucasas trabalha agora com inclusão social na Procuradoria-Geral de Justiça. Pensa políticas e parcerias para o enfrentamento da violência doméstica. Um desses movimentos é a atuação, em conjunto, com agentes dos programas de saúde da família.
Para isso, além do treinamento, as agentes de saúde receberam uma cartilha para distribuir nas casas das mulheres. Uma agente contou para Sucasas que uma das mulheres que ela atendia foi obrigada pelo marido a literalmente engolir pedaços da cartilha. “E ela me disse que jamais desconfiaria que aquela mulher vivia uma relação abusiva com o marido.”
Mas é na história pessoal que Fabíola Sucasas encontra ressonância com as mulheres vítimas de abuso. Isso porque ela mesma viveu um relacionamento em que era agredida e humilhada pelo parceiro.
“Eram agressões e humilhações constantes. E eu sei como é difícil sair dessa situação”, diz Sucasas. “De uma maneira ou de outra, independentemente do querer da vítima de quebrar o silêncio, existe uma violência, existe algo que nós, estado, temos obrigação de evitar, de reprimir. Mas, antes de tudo, existe uma pessoa em sofrimento, que tem uma dignidade violada e que está se sentindo sozinha.”