Fernanda percebeu que era mais vantagem fazer faxina |
Foi uma decisão bem racional. Depois de colocar na ponta do lápis a relação entre o tempo que gastaria fazendo um estágio na sua área e o dinheiro que ganharia, a estudante de pedagogia Fernanda de Castro, 23, chegou à conclusão que valia mais a pena fazer faxina. “Não é só pelo dinheiro, mas também pelas horas que me sobram para investir na minha própria formação”, diz. Ela cursa o quarto período de pedagogia na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), uma das seis instituições de ensino mantidas pelo governo federal.
Ao contrário do que acontece no ensino fundamental e médio, as universidades públicas no Brasil são mais bem avaliadas que as particulares. Significa que, paradoxalmente, alguém que estudou a vida toda em uma escola municipal ou estadual, como Fernanda, estaria menos preparado para entrar em uma universidade pública. Entrando na privada, teria de desembolsar um dinheiro que nunca teve para frequentar uma escola paga.
“A escola pública abriu o acesso, mas a qualidade do ensino caiu. Eu sou idealista, acredito que essa situação pode mudar. É por isso que decidi fazer pedagogia, e não um curso que talvez me desse mais perspectiva financeira, como, por exemplo, marketing”, diz ela.
Em sua experiência no estágio remunerado, quando dava aulas em regime de meio período, trabalhando diariamente, ganhava R$ 900. Com sete dias por mês de faxina, fatura R$ 840. E ainda conta com a possibilidade de complementar o orçamento vendendo café e palha italiana para os colegas da universidade. Fernanda não despreza o estágio, mas diz que, por enquanto, considera importante a convivência no ambiente universitário. “Estou em contato permanente com professores e alunos de todas as faculdades, estudo, pesquiso, faço cursos, participo de congressos acadêmicos.”
Ela acredita que esse convívio vai ajudá-la a saber, inclusive, se o que quer é mesmo dar aulas, ou dedicar-se a outra área da pedagogia Nas duas casas em que faz faxina, Fernanda diz ter uma “relação orgânica” com as patroas: “Elas são professoras, uma delas aposentada, então no café da tarde
conversamos sobre a educação que se pratica no Brasil e o futuro dela. Elas se reconhecem nos meus questionamentos, e posso entender o rumo que a carreira delas tomou.” A universitária fica das 7h até às 16h no trabalho, e então sai para a faculdade.
Enquanto varre a casa, lava a louça e arruma as camas, ela ouve podcasts. Entre os seus favoritos estão os de “Ilustríssima Conversa”, produzido por uma equipe de jornalistas do caderno cultural da Folha: apresenta entrevistas com autores acadêmicos e de não ficção; e “Filosofia Pop”, com professores e pesquisadores que falam sobre pensadores.
Rápida, focada, amigável, Fernanda explica a importância de ouvir a pesquisadora Sabrina Fernandes falando sobre o filósofo alemão Karl Marx (1918-1983), autor de “O Capital” e “O Manifesto Comunista”, durante a tarefa doméstica. Diz que é uma forma de realizar a própria “práxis” de que fala Marx em sua obra. “Se você trabalha munido de informação, sabe o valor do que está fazendo. Teoria e prática caminham juntas. Caso contrário, eu seria uma faxineira que apenas faz a faxina”, diz ela. Trata-se da famigerada “transformação das circunstâncias com a atividade humana”.
Aborto masculino
Durante a entrevista, ela toma um cafezinho, mas não aceita nenhum doce porque diz que exagerou no dia de seu aniversário — comemorado no fim de semana. “Comi muito bolo (prestígio)”, contar. Ao posar para a foto, na livraria do shopping, escolhe para acompanhá-la uma obra do educador Paulo Freire. Fernanda é de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, mora na zona leste e foi criada apenas pela mãe. “Houve um aborto masculino”, diz ela, referindo-se ao abandono da família pelo pai. Tem uma irmã dez anos mais velha, filha de sua mãe com o primeiro parceiro
Apesar de, por ora, privilegiar a faxina, Fernanda diz que pretende cumprir os quatro estágios obrigatórios — “educação infantil”, “ensino fundamental”, “educação de jovens e adultos”, e “gestão” — e chegar ao fim do curso. Até lá, ela se ocupa de projetos como o de “remissão prisional via leitura”, em que trabalha com detentos da Penitenciária Parada Neto 1, de Guarulhos; e repensa permanentemente em “um modelo de ensino que faça sentido”. “A gente trata educação com apostila. Isso não pode levar a um conhecimento satisfatório de nada.”
Embora sofra com crises de incerteza relacionadas à educação, ela diz que não houve nada que a decepcionasse a ponto de fazer desistir. “Precisa ser algo muito forte. A gente ainda vai patinar muito nesse governo, mas eu sou dura na queda. Até agora, a terapia tem ajudado a dar conta”, diz. Terapia paga com a faxina.
do site Universa