Aos 26 anos, Bianca Telini foi contratada para montar o laboratório da Cervejaria Tupiniquim e implementar o controle de qualidade da mais premiada cervejaria artesanal gaúcha. Sua presença na fábrica era duplamente inédita: a primeira mulher naquele ambiente desempenharia uma nova função.
O bom humor certamente ajudou a profissional a se enturmar na equipe só de homens. Mas o que contou para os sócios da empresa foi o currículo: graduação em biotecnologia, curso de tecnologia cervejeira, um mestrado em andamento cuja pesquisa é focada em desenvolvimento de leveduras e experiência em duas cervejarias de Porto Alegre. Ao comentar a contratação da profissional, um colega faz questão de frisar que “não há discriminação na empresa”.
– Ela foi selecionada por mérito. Mas até que é bom uma mulher circulando no meio de um monte de homem, né?
– Por que seria bom uma mulher circulando na fábrica? – pergunta a repórter.
– Ah… É bom para botar ordem – responde, reproduzindo sem querer aquela antiga ideia de que, às mulheres, cabem o cuidar e o organizar, típicos das profissões onde elas ainda são maioria, como secretariado e enfermagem.
Existia um medo de vir trabalhar em uma fábrica cheia de homens. Mas foi questão de tempo e de explicar o que eu estava fazendo ali para tudo ficar tranquilo.
Mas Bianca não estava ali para “circular” ou colocar ordem. A profissional controla a densidade do mosto (mistura líquida que depois vira cerveja), coleta amostras do produto em tanques de 20 mil litros e confere a concentração alcoólica e outros parâmetros exigidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Há três meses, ela ganhou um reforço: Patricia Picolatto, 28 anos, com quem Bianca se formou na primeira turma de biotecnologia da UFRGS, em 2014, virou sua assistente. Hoje, aos 27 anos, a microbiologista conta que são “super respeitadas” no trabalho. Mas, no início, o estranhamento foi grande.
– Todo dia tinha que provar meu conhecimento e mostrar que sou uma pessoa legal (risos). Existia um medo de vir trabalhar em uma fábrica cheia de homens. Mas foi questão de tempo e de explicar o que eu estava fazendo ali para tudo ficar tranquilo.
O sonho de ser cientista
Durante uma das suas idas ao chamado chão de fábrica para medir o espaço em que seriam colocados os novos móveis e aparelhos do laboratório, um colega perguntou-lhe quando ela começaria na área de vendas – o setor, ao lado do RH, reúne as outras três mulheres da empresa de um total de 25 funcionários.
Não por coincidência, Bianca começou no setor de vendas em uma microcervejaria da Capital. Na segunda cervejaria por onde passou, atuou também nos eventos. As duas experiências não lhe permitiram lidar com a produção, mas os trabalhos foram importantes para que se inserisse no mercado.
As funções passavam longe da imagem de futuro que Bianca tinha quando assistia ao Mundo de Beakman, brincava com um microscópio de mentirinha e sonhava em ser cientista. Mas, aos poucos, encontrou formas de mostrar que sabia sobre a produção cervejeira.
– A levedura é um pouco tabu neste meio. Muita gente chama só de fermento e esquece que é um organismo vivo. E, por isso, a gente tem que controlar muito o processo. É um desafio na própria fábrica para instruir os funcionários.
Especializar-se foi uma forma de se destacar em uma área onde “já tem muito homem fazendo diversas funções”, diz. Para ela, estudar não basta, é preciso acreditar no seu potencial.
Ajudou muito na sua trajetória o apoio de outras cervejeiras. Em 2016, quando trabalhava na microcervejaria Baldhead, participou da criação de um grupo de mulheres que atuavam no bairro Anchieta, conhecido pela concentração de fábricas de cerveja. O Ceva das Minas começou com 12 profissionais. A ideia era tirá-las do isolamento e trocar conhecimento em workshops ministrados por e para elas.
– Assim começamos a nos especializar dentro do nosso grupo para conseguir crescer nas cervejarias. Tem muita mulher que trabalha na produção mas não é criadora de nada, só segue receita. Com o coletivo, começamos a ter mais força – explica Bianca.
Hoje, o grupo do WhatsApp tem 63 contatos, com profissionais das áreas de marketing e vendas também. No Facebook, elas já são quase cem, pois somaram-se a apreciadoras da bebida que, muitas vezes, se sentem sozinhas para visitar cervejarias.
Para marcar o Outubro Rosa de 2018, o grupo fez parte de uma brassagem coletiva com outros 22 grupos femininos de cerveja do Brasil. A bebida produzida foi batizada como Batom Vermelho, e o dinheiro das vendas foi doado para três instituições que atuam para melhorar a qualidade de vida de pacientes em tratamento para o câncer de mama.
Nos meses de março, as “minas da ceva” de Porto Alegre costumam ser procuradas para projetos colaborativos. Hoje elas priorizam brassagens coletivas com cervejarias de mulheres, depois cervejarias que tenham mulheres na produção, e, por último, cervejarias exclusivas de homens. Nestes últimos casos, se elas entendem que o projeto vai beneficiar apenas quem está propondo a parceria, a recusa está na ponta da língua:
– Primeiro, contratem uma mulher.
Do ClickRBS