Muita coisa mudou nos últimos 18 anos, segundo a diretora de cinema Louisa Wei. Em 2001, ao perceber que as pioneiras do cinema chinês estavam sendo repetidamente esquecidas nos livros de História, ela tomou para si a missão de reescrever essa narrativa. “Havia muito pouca coisa sobre mulheres diretoras. Eu sabia que elas haviam existido, mas quando você ia estudar e ler sobre elas, elas simplesmente não estavam lá.”
Em 2009, Wei já havia publicado um livro trazendo entrevistas com 27 diretoras chinesas e japonesas, assim como vários artigos acadêmicos sobre o tema “Mulheres chinesas no cinema”. Ela documentou o trabalho de diretoras como Tazuko Sakane, nascida em 1904 no Japão e que, em 1936, escreveu: “Eu quero apresentar a verdadeira figura das mulheres, vistas a partir do mundo das mulheres”.
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Wei também escreveu sobre Chen Bo’er, atriz e talvez a única chinesa que trabalhava como produtora-diretora nos anos 1940; Tanaka Kinuyo, que fez sua estreia como diretora em 1953; e ainda Dong Kena e Wang Shaoyan, ambas prolíficas nos anos 1960 e 1970. “[Eu tive de] reescrever toda a história do cinema.”
Havia apenas um problema: o público não estava interessado na pesquisa de Wei. “Basicamente, o livro não teve impacto algum, ninguém estava lendo aquele tipo de livro ainda”, disse ela à BBC Culture. Apesar de um início lento, com o tempo seus esforços acabaram não sendo em vão. Enquanto dava aulas de cinema com professora associada na City University em Hong Kong, Wei começou a notar que a cada ano havia mais e mais alunas nas suas turmas, e elas queriam saber sobre as mulheres que vieram antes delas. Jovens mulheres cineastas começaram a ler e a compartilhar seu trabalho.
O interesse aumentou ainda mais, com Wei sendo convidada a falar publicamente sobre sua pesquisa. “No ano passado, eu fiz uma apresentação, havia 300 pessoas no auditório, estava cheio, e o título era ‘Diretoras Chinesas desde 1916’. Difícil de imaginar!”, diz ela, rindo e balançando a cabeça, incrédula.
Especialistas em cinema começaram a usar seu trabalho para atualizar seu conhecimento da história do cinema em nível global. Um de seus trabalhos de maior destaque como diretora é um documentário chamado Garotas do Portão Dourado (Golden Gate Girls), que celebra o trabalho de Esther Eng, a primeira diretora de cinema da China e que teve destaque nos anos 1930 e 1940, tanto na China como em Hollywood. “Eu mostrei [Garotas do Portão Dourado] em Paris em dezembro [de 2018]. Um acadêmico que havia trabalhado com isso sua vida toda veio falar comigo no final e disse que estava bastante emocionado de ver o documentário – ele não a conhecia”, diz Wei.
Eng não ficara de fora apenas da história do cinema no Ocidente. No começo de sua pesquisa, relata Wei, “pesquisei os arquivos de cinema de Hong Kong e deparei com o nome de Esther Eng, ela [foi nomeada] uma heroína nacional em 1937 – eu encontrei um artigo informando isso. Mas isso foi a única coisa que eu consegui encontrar”.
Foram necessários anos de trabalho com pesquisadores, historiadores e jornalistas para desvendar sua extraordinária carreira para o documentário. Num certo ponto, a equipe precisou até mesmo resgatar centenas de fotografias da vida de Eng de uma lata de lixo em San Francisco (EUA). Juntos, eles descobriram que Eng havia viajado mundo afora e explorado temas que eram tabu numa época em que muitas mulheres mal tinham empregos, dirigindo nove longas-metragens nos Estados Unidos e em Hong Kong, incluindo Heroína Nacional (National Heroine), sobre uma piloto que luta por seu país.
Hoje Wei mostra com orgulho a edição de março de 2019 da Life Magazine, revista da China que trouxe um farto material sobre Wei e seu trabalho celebrando Esther Eng. Isso é especialmente animador para Wei, não apenas porque o trabalho de mulheres cineastas está finalmente recebendo atenção, mas porque a revista é chinesa, e informação é sempre muito censurada no país, o que faz do compartilhamento da história de Eng algo particularmente desafiador.
Parece ter havido uma mudança enorme em termos de pensamento, segundo Wei. Em 8 de março de 2019 – Dia Internacional da Mulher –, artigos circularam na maior rede social da China, WeChat, com os títulos “O cinema chinês apenas é completo com estas 100 mulheres diretoras”, “60 mulheres diretoras independentes da China” (em que Wei é mencionada) e “Os 100 maiores filmes da história dirigidos por mulheres”. Esse é um fenômeno novo: “Isso é inédito! [O Dida Internacional da Mulhere] seria geralmente para agradecer as mulheres por fazerem seus trabalhos domésticos, mas nada como isso, celebrar mulheres diretoras”, diz Wei.
Todos esses acontecimentos – as conversas no WeChat, o aumento de estudantes do sexo feminino nas turmas da escola de cinema, o interesse da mídia em Esther Eng – sinaliza uma clara tendência, um apetite por mais informação sobre mulheres no cinema e uma aceitação crescente de mulheres como cineastas.
Festivais com diretoras proliferam
O que está provocando o interesse repentino do mundo no talento de mulheres cineastas da China? Wei acredita que parte das respostas esteja nas iniciativas feministas que tomaram o mundo nos anos recentes, como o movimento #MeToo. “O #MeToo realmente deixou as pessoas atentas… Agora, se eu digo ‘eu sou uma feminista’, as pessoas têm um entendimento melhor [do que isso significa]. Questões que dizem respeito às mulheres estão circulando no WeChat”, diz ela.
Por toda a China, um número crescente de festivais de cinema que estão homenageando mulheres diretoras também ajuda a mudar o tom da conversa. Um exemplo é o Festival de Cinema de Mulheres da China, evento que ocorre duas vezes por ano, em Pequim e Hong Kong, desde 2013. Seu objetivo é destacar o trabalho de cineastas do sexo feminino do mundo todo e despertar o debate na China e em Hong Kong sobre direitos das mulheres. A edição de 2019 em Hong Kong foi realizada em março e contou com filmes como Ava, dirigido pela canadense-iraniana Sadaf Foroughi, sobre uma jovem no Irã, e #PrazerFeminino, um documentário sobre cinco mulheres em comunidades patriarcais que quebram o silêncio sobre os maus-tratos de que são vítimas.
Festivais como esse são particularmente importantes para jovens cineastas, como Nicola Fan. Cinemas de arte praticamente não existem em Hong Kong, e sem o festival seria difícil ter acesso a esse tipo de conteúdo. Falando ao final da edição de Hong Kong, em março, ela disse: “O Festival de Cinema de Mulheres da China é interessante porque traz ótimos documentários [feitos por mulheres] para Hong Kong e para a China. Ele expõe o público a filmes como Ava, que é bem diferente – você não vê esse tipo de filme em cinemas comuns. Hong Kong está acostumada a grandes filmes do tipo Vingadores ou de outros super-heróis. Eu não ficaria sabendo [de filmes como Ava] sem o festival.”
Ainda assim, apesar do avanço significativo que as mulheres cineastas estão conseguindo na China e em Hong Kong, existem grandes desafios. A tecnologia pode ter tornado a produção de filmes mais barata e fácil, mas sem salas de cinema para filmes de arte ou muito investimento público, ainda é difícil para novas diretoras se estabelecerem. A jovem cineasta Sharon Yeung diz: “Agora muitos de nós carregamos câmeras por aí e filmando qualquer coisa, mas me surpreende quão pouco nós ganhamos… Os mais novos têm que batalhar. Os filmes ainda são feitos pelos veteranos. Marvel, super-herói, grande orçamento – isso é o que as pessoas querem ver”.
Além disso, o movimento #MeToo pode estar aumentando a consciência sobre questões envolvendo as mulheres, mas ainda está longe de provocar o mesmo impacto na China e em Hong Kong. Uma das primeiras vítimas a falar sobre sua experiência depois que o #MeToo se espalhou, a atleta Vera Lui, de 23 anos, foi criticada por membros do público e pela mídia em 2018 por ter revelado o abuso sexual que sofrera nas mãos de seu antigo treinador. Muitas mulheres ficaram assustadas e decidiram se manter em silêncio.
A jovem cineasta Sharon Yeung quer fazer filmes “sobre a experiência feminina”
Li Dan, fundador do Festival de Cinema de Mulheres da China, acredita que o cinema seja uma forma crucial de atingir os chineses e encorajar um debate público nesse tipo de tema. “[Na China] Nós não podemos espalhar nenhuma informação por meio da mídia tradicional ou grande veículos das novas mídias, que são todos controlados ou censurados pelo governo”, diz ele. “Mas o cinema… é uma boa maneira de dar destaque a questões sociais.”
Apesar dos desafios ainda enfrentados, Nicola Fan acredita que este seja um momento empolgante para mulheres no cinema, citando o aumento do número de campeões de bilheteria com mulheres em papéis principais e dirigidos por mulheres. “Costumava ser sempre Batman, Superman: homem, homem, homem. É encorajador ver filmes como Mulher Maravilha vindo de Hollywood, ajuda o público a exigir uma maior variedade de histórias, diz ela.
Realmente, 3 dos 10 filmes nacionais com maiores bilheterias de 2018 na China foram dirigidos por mulheres (em Hollywood, todos os dez foram dirigidos por homens), e elas estão mudando as coisas. A diretora Angie Chen pessoalmente desafiou estigmas enfrentados por mulheres nos filmes que faz. “Quando comecei a trabalhar [com cinema], as mulheres na produção ouviam que elas não podiam sentar na caixa de uma câmera porque elas dariam azar ao filme. Quando eu dirigi meu primeiro filme, eu sentava deliberadamente sobre as caixas. Ninguém se atreveu a dizer nada – eu era a diretora”, disse Chen.
A diretora Angie Chen confrontou o estigma associado a mulheres diretoras na China
Em relação ao futuro, a única coisa que não está mudando drasticamente são os sonhos de jovens cineastas de hoje na China e em Hong Kong, que lembram aqueles das mulheres nos anos 1930. Como a diretora japonesa Tazuko Sakane em 1936, Sharon Yeung também quer usar sua visão de mundo para fazer filmes: “Eu quero fazer filmes sobre a experiência feminina”, diz ela. “É tão estimulante o fato de haver mais e mais filme sobre isso, e eu não vejo a hora de fazer mais, especialmente sob uma perspectiva oriental. Isso é tão inexplorado. Nós vimos filmes feitos por homens por todos esses anos e estamos prestes a descobrir todas essas novas perspectivas.”
Da BBC