Na década de 1960, a Cosmopolitan norte-americana tratava de assuntos como o homem perfeito segundo os astros e as verdades sobre a pílula anticoncepcional. Na edição de abril de 1967, as leitoras encontraram nas páginas da revista uma nova alternativa de profissão.
A reportagem “As garotas da computação” adicionava ao lado de secretariado e enfermagem mais uma ocupação considerada feminina: a programação.
Consultora em desenvolvimento de software em uma multinacional, Desiree Santos nasceu 22 anos depois da publicação e sempre foi minoria durante sua formação. Para quem a questiona do porquê de tão poucas mulheres na tecnologia, ela cita a reportagem de 1967. Antes do atual índice de 14,36% de mulheres entre desenvolvedores de software no Brasil, o mercado de ciência da computação era um ambiente predominantemente feminino. Em 1974, a primeira turma de formandos de Ciências da Computação na USP tinha 14 mulheres e seis homens.
Paciência e atenção aos detalhes eram aptidões demandadas pelo novo trabalho, dizia a matemática Grace Hopper, entrevistada pela reportagem da Cosmopolitan. Para uma das pioneiras do ramo, que participou da programação do primeiro computador comercial, as mulheres seriam “programadoras natas”.
– Se hoje temos uma tecnologia tão avançada, é por causa da contribuição feminina lá no início. Precisamos dar visibilidade a elas para aumentar o número de referências – defende Desiree.
Hoje ela cita Hopper e Ada Lovelace – a primeira pessoa a programar um computador na história –, mas suas primeiras referências na computação eram masculinas. Quando ela iniciou a faculdade de Ciências da Computação, no Rio de Janeiro, em 2007, a gangorra dos sexos já havia se invertido.
Se hoje temos uma tecnologia tão avançada, é por causa da contribuição feminina lá no início.
A mudança de cenário se deu com a chegada dos computadores pessoais nos anos 1980 e a popularização dos jogos. Foi quando os homens, antes reconhecidos pelo desenvolvimento dos primeiros hardwares, que pesavam toneladas e ocupavam salas inteiras, passaram a se interessar pelo software.
Ao longo de toda a graduação, Desiree teve só uma colega e uma professora mulheres. Mas nada disso a incomodava até a metade do curso, quando começou a participar de eventos de software livre. De tanto ouvir questionamentos como “por que usar Windows e não Linux”, desenvolveu um olhar crítico para a vida.
– Eu brincava de casinha enquanto meus primos ganhavam brinquedos como aqueles blocos para montar, coisas que estimulam mais – lembra.
Mas o ambiente criativo da casa, com uma mãe artesã e um pai que vivia abrindo rádios e outros eletrônicos, estimulou o gosto pela cultura da “mão na massa”. Esse seu perfil “maker” também é contemplado na empresa, onde ela construiu uma luva com sensores capazes de traduzir as cores das obras em sons, um projeto em parceria com a artista plástica Lenora Rosenfield.
– A cultura maker não é só voltada para a eletrônica, é um mindset de criar algo com o mínimo que você tem. É para a vida – ensina.
Com o despertar para a questão de gênero, ainda na faculdade, Desiree montou um grupo de mulheres que trabalhavam com tecnologia. Organizadas, passaram a realizar eventos e dar palestras. Para ela, o fato de uma mulher estar no palco, em frente a muitas pessoas, é uma forma de lutar pelo aumento da representatividade feminina na profissão.
Há seis anos, a carioca mora em Porto Alegre. Veio para a capital gaúcha ao ser selecionada para uma vaga na empresa de desenvolvimento de software ThoughtWorks. Nos escritórios do Brasil, 44% da equipe é de mulheres. Das 14 posições de liderança, 10 são ocupadas por elas. Na área de tecnologia, são 223 mulheres, das quais 85 se autodeclaram pretas ou pardas. Na empresa, Desiree participou da criação do Quilombolas, um grupo de formação e discussão de questões relativas à raça.
Você sabia que as mulheres negras têm a menor renda entre os diplomados no país?
– Sei que vivo numa bolha – entende.
Enquanto no trabalho aprendia mais sobre a história dos quilombos e despertou para sua negritude, fora dali ainda lidava com o preconceito. A frequência de seguranças a seguindo quando entrava em um mercado a fez desenvolver uma defesa: pegar um cestinho como quem diz “ó, estou aqui para comprar”. À medida em que fortaleceu sua negritude, abandonou esses mecanismos e, há quatro anos, deixou de alisar o cabelo e libertou seus fios crespos.
– Ver meu cabelo como realmente é me deu mais força, me levou ao encontro da minha origem. Tudo isso fez eu me posicionar com uma narrativa para negritude também, não só como mulher, mas mulher negra na tecnologia.
Do Zero Hora