A sexóloga Helena Amaral, 32, teve uma infância conturbada. Os pais foram presos, ela se viciou em drogas e viveu nas ruas. Diz que já não se lembra quantas vezes foi violentada. Cercada por impossibilidades, ela trilhou o melhor caminho que conseguiu: nunca deixou de estudar, criou sozinha a filha, mesmo sem local fixo para morar, e empreendeu.
Hoje, tem um SPA em Campinas no qual recebe mulheres para mais do que tratamentos estéticos: quer acolher e resgatar a força e a feminilidade de quem não teve uma vida fácil, mas permanece resiliente.
“Fui criada em Pirituba, na zona norte de São Paulo. Meus pais se casaram muito cedo e lembro que eles eram camelôs. Só que, depois, começaram a se envolver com o crime. Eu tinha mais ou menos quatro anos quando eles foram presos por assaltar um banco. Minha mãe estava grávida de dois meses do meu irmão mais novo. Éramos em quatro. Eu cresci escutando que era filha de marginais.
Com eles presos, cada filho foi para uma casa diferente. Minha irmã ficou com a minha tia, eu e meu irmão ficamos divididos entre a casa das duas avós e, depois que o caçula nasceu, a minha avó pegou ele para criar também. Tenho lembranças muito conturbadas dessa época. Meu pai era uma pessoa agressiva, havia muitas brigas.
Os finais de semana da minha infância eu passei em visitas ao presídio. O meu pai foi um dos sobreviventes da chacina do Carandiru, em 1992 [que causou a morte de 111 presos]. Ele se fingiu de morto. Aquilo foi um choque terrível para nós, porque chegamos a pensar que ele tinha morrido mesmo. Notava que ele estava aprendendo com aquela experiência toda, mas a minha mãe, não. Ela começou a traficar dentro da prisão. Era popular entre as presas e se orgulhava disso.
Quando conseguiu a liberdade, foi morar na casa do meu avô, mas na verdade sabia que ele nunca a havia perdoado. Em pouco tempo, passou a traficar na região e a ficar conhecida por isso. Não deu outra. Depois de muitos desentendimentos, ela resolveu se mudar e alugou um apartamento na avenida Nove de Julho para morar.
Minha mãe era muito imatura. Hoje vejo que ela, na verdade, era uma moleca. Eu era a filha mais ligada a ela e, com isso, acabei acompanhando todo o processo da marginalização mais de perto. Ela passou a aliciar as pessoas, me levava para dentro do quarto para embalar a cocaína, ensinava como colocar nos sapatos para a polícia não pegar. Com 12 anos, acabei me viciando. Um dia, minha mãe falou que precisava viajar, mas que voltaria rápido. Simplesmente sumiu. Só reapareceu depois de uns sete anos.
Nessa época, eu me afundei totalmente. Não trabalhava e comecei a pegar as coisas dentro de casa para trocar por droga. A família se desuniu novamente. A síndica me expulsou do prédio, e fui morar debaixo do viaduto Nove de Julho. Passei fome. Se você me perguntar quantas vezes fui estuprada, não sei responder. Muitas vezes abusaram de mim enquanto eu estava drogada.
Eu tinha um vizinho chamado Charles que resolveu me ajudar. Ele era cadeirante, havia perdido os movimentos das pernas depois de um assalto, e sabia bem da situação de alguém que precisava recomeçar a vida. Fui morar com ele e larguei o vício. Por isso digo que sempre há uma possibilidade. Eu sabia que merecia mais do que aquilo. O meu desejo de viver era maior, eu queria ser alguém.
Passei a minha infância toda escutando que não seria nada. Via meus primos ganhando brinquedos no Natal, e eu sem nada, porque não tinha pai para me dar. Quando o Charles me estendeu a mão, me agarrei àquilo. Já tinha uns 13 anos, mas ele sempre pedia para falar que iria fazer 18, porque era perigoso ele colocar uma menor na casa dele.
Voltei a estudar, fiz supletivo e arrumei um trabalho para ganhar um salário mínimo. Era uma empresa de encadernação, onde a minha irmã também trabalhava. Fui tocando a vida até que, em certo momento, Charles falou que estava indo embora. Não sei se ele tinha conhecido alguém ou se não podia mais arcar com as despesas do apartamento. Lembro das palavras dele: “Olha, já cumpri o que deveria cumprir com você. Sei que ainda é uma menina, mas não sou seu pai e você precisa se virar”.
Fiquei sozinha de novo, mas logo arrumei uma amiga para dividir o espaço comigo. Continuei indo à escola e trabalhando. Quando tinha 15 anos, veio aquela onda de adolescente que precisa ser aceita na turminha do colégio. Eu era isolada, e o pessoal falava que parecia um menino, que não sabia o que era sexo. Então, decidi transar de verdade –pois até ali só havia feito sexo contra a minha vontade.
Conversei com o homem que viria, depois, a ser o pai da minha filha. Na época, ele já tinha 20 e poucos anos e nem sabia ao certo sua opção sexual. Eu, mais uma vez, menti que iria fazer 18. Passei no posto de saúde para pegar anticoncepcional, tomei o remédio por um mês e 15 dias. Em um final de semana, tive a relação com ele. Toda aquela sensação ruim dos estupros voltou, os medos reapareceram. Comecei a evitá-lo e a não deixar ninguém tocar em mim de novo. Voltei a me isolar.
Um dia, passei mal com o cheiro de um pastel, e uma colega falou que poderia estar grávida. Primeiro disse que não, só tinha transado uma vez na vida, mas resolvi fazer exame de farmácia. Fiz oito e, sim, eu estava grávida. Procurei o pai da minha filha depois de dois meses, e ele não quis assumir, falou que era um absurdo. Me mandou tirar. Decidi que iria ser uma mãe diferente daquela que eu tive.
Quando completei sete meses, a amiga que morava comigo disse que não daria certo o bebê nascer lá, pois morávamos em uma quitinete. Fiquei sem ter para onde ir novamente, mas, para não dormir na rua, ficava em um bingo durante a noite, nas máquinas, sentada. Pela manhã, saía para trabalhar e, depois, ia para a escola. Em pouco tempo, descobri uma casa que estava em demolição e a invadi, permanecendo lá até o final da minha gravidez.
Quando fui para o hospital, consegui entrar em contato com uma amiga de colégio. Ela e uma irmã foram lá, falando que eram da minha família. Eles não queriam me liberar, porque eu era menor de idade. Fui para a casa delas. Eu estava com 16 anos, tinha uma criança e mais nada. Fui viver na casa da irmã da minha amiga, que já tinha duas meninas. Lavava, cozinhava e tomava conta das filhas dela, em troca de fraldas, comida e um teto para ficar.
Mesmo com toda dificuldade, eu não parei de estudar. O tempo passou, arrumei outros trabalhos, mas sempre estudando. Me agarrei às oportunidades que surgiam e sempre tive esperança. Aos 19 anos conheci meu ex-marido. Tivemos um relacionamento de quase dez anos e descobri o que de fato era uma família. Tive boas vivências, amadureci muito como mãe e como mulher. Juntos, tivemos um filho.
Nunca larguei os livros. Consegui me graduar em sexologia e, agora, estou me aperfeiçoando em psicanálise. Para entender mais do universo feminino, fiz especialização em terapia tântrica.
Juntei as três áreas para montar um espaço exclusivamente feminino. Quero dar oportunidade para as mulheres falarem sobre sexualidade. Ter o SPA vai além do cuidado estético; é um espaço único e diferenciado, acolhedor, aconchegante e sofisticado. Uma casa que, em sua arquitetura, tem uma história forte. Olhando as marcas das pedras na parede, percebi que todas nós, mulheres, temos também nossas marcas, nossas feridas e cicatrizes.
Então, merecemos um lugar que nos faça olhar para dentro de nós. Naquele ambiente rústico e forte criei um SPA onde também ministro workshops sobre sexualidade e técnicas tântricas, trabalhando para resgatar a força que existe em cada mulher.”