Cantora detona o patriarcado e lamenta que o “instinto da mulher é tolhido e esmagado”

By 21 de julho de 2019Lute como uma garota


Não tem mulher que não se transforme ao ler “Mulheres que Correm com os Lobos”, de Clarissa Pinkola Estés. Faz muitos anos que o li, então não está tão fresco no meu cérebro, mas ressoa na minha alma até hoje.

Basicamente, o livro aborda 19 mitos, lendas e contos de fadas e resgata histórias ancestrais da cultura oral dos mais diversos lugares do mundo. É muito poderosa a maneira como ele liga o feminino à questão do instinto.

A gente racionaliza demais a vida e acaba esquecendo que é bicho. Também somos intuição e espiritualidade, características que a sociedade capitalista vai desmontando.

A mulher vai sendo tolhida de seus instintos, e talvez sejamos mais ligadas a isso do que o homem. O útero, o ventre nos traz uma capacidade diferenciada de empatia e acolhimento. Nosso corpo está ligado aos ciclos naturais. A lua, que muda de fase a cada sete dias, se relaciona diretamente ao ciclo menstrual da mulher. A gravidez também —você fica perto de parir com 36 luas.

O título faz essa correlação com lobos, animais que não são nem nunca serão domesticados. Lembra que o patriarcado cerceia nossos espaços, nossa fala, nosso pensamento, os lugares que podemos ocupar, e a obra rompe com as instituições que mantêm isso atuante —como o casamento, por exemplo, uma pilastra da manutenção dos privilégios patriarcais. Esse livro formou
uma geração de feministas e o engraçado é que não conheço nenhum homem que o tenha lido.

É uma leitura leve em termos de prosa, mas profunda, atingindo diretamente o inconsciente. Conta uma história por capítulo, algo adaptado a nossa era da fragmentação —ainda que, no fundo, seja uma só história do começo ao fim: a das mulheres livres.

Quando você acaba cada narrativa, fica nítido para nós, mulheres, como os instintos são esmagados. Parece um livro de histórias, mas comunica algo numa dimensão muito mais profunda, ressoando no plano espiritual e sexual dos corpos.

Faço uma correlação até com a Bíblia: Jesus foi um revolucionário, que teve suas ideias distorcidas em parte pela Igreja Católica (especialmente quanto ao protagonismo de Maria Madalena, única mulher entre os apóstolos e tida como a favorita de Jesus, segundo os evangelhos apócrifos). Avatares como ele, Buda, Krishna, se comunicavam por metáforas, assim como no livro de Clarissa Pinkola Estés.

Li “Mulheres que Correm com os Lobos” ao redor de 2007, na época em que estudava na USP e fazia algumas aulas no curso de antropologia. Plantou em mim uma semente poderosa.

Pouco tempo depois, já repercutiu em um show que fiz dirigida por Ney Matogrosso, em que havia imagens fortes da perspectiva feminina. Por exemplo, eu usava um vestido com fendas laterais e em determinado momento, sentava numa cadeira de frente para o público e com as pernas abertas, de modo a parecer que estava nua, o que mexia muito com o público e comigo.

A sexualidade feminina, que é tocada profundamente pelo livro, é um tabu. Quanto mais nos conectamos a nossos instintos, mais ela aflora e se rebela, já que vivemos oprimidas em uma cultura machista e falocêntrica.

Existe uma cartilha do que é aceito no sexo da mulher, e estamos no ápice de um momento de libertação disso, da compreensão de que nosso prazer é tão importante quanto o do homem.

Meu trabalho é muito pautado por essa primavera feminista que vivemos de uns anos para cá. O feminismo existe há séculos, mas agora vemos uma revolução ainda maior. Já no meu primeiro disco eu falava sobre arquétipos femininos, e em todos os álbuns vim procurando discutir isso, mas tudo culmina neste último, “Todxs”, que aborda não só a liberdade da mulher mas outras pautas importantes de minorias e de ativismo político.

Cantar para mim é um ato totalmente visceral, existencial, útero-vaginal. Se eu tivesse que cantar de forma apolínea, não teria me transformado em cantora —foi um terreno onde descobri que poderia ser muito livre. O palco é um lugar em que posso viver a minha essência e verdade absolutas, é um
local de transcendência.

Então aquele livro foi seminal para tudo o que desenvolvi como artista nos dez anos seguintes. Depois vieram outras obras, de Angela Davis, bell hooks, Djamila Ribeiro — aliás, é importante falar sobre o epistemicídio das intelectuais negras, mas felizmente está acontecendo uma revolução nesse lugar.

“Mulheres que Correm com os Lobos” é uma espécie de pedra filosofal desse movimento todo. Há ecos dele em tudo o que tenho feito, não só na música, mas como ser humano, como cidadã e como bruxa, loba, sagrada, profana, puta, santa, mulher.

Da Folha de SP

Leave a Reply

%d blogueiros gostam disto: