A insegurança para mulheres em Jericoacoara fez com que um grupo de 23 trabalhadoras criasse, no aplicativo de mensagens WhatsApp, o Grupo Carona Segura Preá-Jeri. O alerta para a necessidade de uma rede colaborativa de transporte surgiu após registros de estupros e relatos silenciosos de vítimas atacadas, principalmente à noite, na rota Jeri-Preá. Somente nos cinco primeiros meses deste ano, foram 76 estupros entre Cruz e Jijoca de Jericoacoara – municípios vizinhos e ponto do mapa onde está localizado o Parque Nacional de Jericoacoara e o destino turístico internacional mais midiático do litoral do Ceará, distante 299,1 km de Fortaleza.
O cenário é grave já que em todo ano de 2018 foram 84 registros, segundo dados enviados ao O POVO pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) do Estado. A permanecer a tendência, a quantidade de casos deste ano pode ultrapassar o número de estupros do ano passado.
Celi Alexandrino, advogada mineira que trocou Paris por Jericoacoara e abriu um escritório no distrito vizinho de Preá, acompanhou duas dessas vítimas. “Eram pessoas ligadas a mim e tive contato com elas logo depois do ocorrido”, afirma. No primeiro caso a vítima não conseguiu levar a denúncia adiante. “Por vergonha, como imagino que deva saber. Não é algo fácil, agravado ainda por ocorrer em uma vila. Orientei-a, contudo respeitei sua vontade”, explica.
No segundo ataque, conta Celi Alexandrino, o estuprador foi preso em flagrante e encaminhado para a delegacia de Jijoca de Jericoacoara. No entanto, ao ser transferido para um presídio onde aguardaria a conclusão do inquérito policial e a sentença judicial, foi assassinado por outros detentos.
Em decorrência do primeiro caso, em setembro do ano passado, a advogada e outras mulheres organizaram um grupo para viabilizar transportes para trabalhadoras que tinham de fazer as rotas Jericoacoara-Preá e Preá-Jericoacoara. A maioria é empregada de pousadas, restaurantes, bares e outros equipamentos com atividades noturnas. Trabalham durante o dia e retornam para casa depois das 18 horas ou tarde da noite.
Um dos estupros, recorda Celi Alexandrino, ocorreu por volta da meia noite no trajeto Jericoacoara/Preá na volta da vítima para a residência. “Como não existe transporte coletivo regular, os trabalhadores são obrigados a se submeter à boa vontade alheia em ceder carona. E justamente uma pessoa que deu carona, a estuprou. Como o ano era eleitoral (2018), o poder público não tomou providências para sanar a questão do transporte”, denuncia a advogada.
O grupo “Carona Segura” tem 103 integrantes que pedem ou oferecem caronas para rotas vulneráveis a mulheres. A procura é maior que a oferta. “Particularmente, após os casos, diminuí bastante minhas idas a Jericoacoara. Somente o fazendo a trabalho e durante o dia. Não me sinto segura na Vila de Jericoacoara e tampouco em fazer o trajeto Preá/Jericoacoara. O que é uma lástima, visto que um dos fatores que me atraiu até aqui foi a segurança. É muito triste ver que o ‘paraíso’ somente existe, hoje em dia, no imaginário”, constata Celi Alexandrino.
Além da criação de um grupo para caronas seguras, as 23 mulheres fundaram também o coletivo Grito de Paz Jeri ou #gritodepazjeri. No texto de apresentação, elas avisam que a ideia surgiu em julho do ano passado. “Temos presenciado casos de abusos e estupros, principalmente de mulheres que pegam carona no trecho Jeri-Preá. Estamos enviando esta mensagem para que fiquem alertas à situação e para pedir ajuda da população e órgãos públicos”.
A paulista Cauane Polo, ex-gerente de pousadas em Jericoacoara e hoje instrutora de kitesurf, é uma das fundadoras do grupo. Ela conta que desde o surgimento do coletivo, em julho do ano passado, mais cinco mulheres foram estupradas. No entanto, não fizeram boletins de ocorrências porque não se sentiram acolhidas nem seguras para denunciar. Uma das intenções do “Grito de Paz Jeri” que tem perfis no Facebook e Instagram, indica Cauane, é diminuir a subnotificação.
O estado psicológico da vítima e o constrangimento de ir a uma delegacia sem acolhimento apropriado dificultam a notificação de vários casos. Segundo Cauane Polo, esse argumento da “subnotificação” não pode servir de desculpas para que órgãos municipais de Jericoacoara e do governo do Estado ignorem ou minimizem uma situação amedrontadora em um concorrido destino turístico do mundo, que é Jericoacoara. “Há dois problemas urgentes: a insegurança para mulheres e a falta de transporte coletivo em “um lugar que tem até um aeroporto para o turismo para Jeri”, inaugurado ano passado em Cruz, mas não garante mobilidade digna nem para turistas nem para a população local.
do site do Jornal O Povo