São 3h da madrugada. Meu travesseiro está encharcado com suor frio, meu corpo está tenso e tremendo depois de acordar do mesmo pesadelo que me assombra todas as noites. Eu sei que estou segura na cama – isso é um fato. Minha vida não está mais sob risco, mas eu não consigo parar de pensar na terrível cena que passou novamente na minha cabeça enquanto eu dormia, então, continuo alerta, atenta a qualquer ruído no escuro.
Essa é uma das formas que eu vivencio o TEPT, ou transtorno de estresse pós-traumático. O TEPT é um transtorno de ansiedade causado por acontecimentos muito estressantes, assustadores ou perturbadores, que são frequentemente revividos em flashbacks e pesadelos. Os sintomas eram conhecidos como “shellshock” (trauma de guerra), e ficaram mais conhecidos depois da volta dos soldados das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, depois de testemunhar horrores inimagináveis. Mesmo hoje, mais de cem anos depois do fim daquele conflito, TEPT ainda é predominantemente associado a guerras e a algo geralmente vivido por homens.
Milhões de mulheres no mundo todo, porém, sofrem de TEPT, não apenas depois de lutar em uma guerra – mas também depois do esforço para dar à luz, como aconteceu comigo. E os sintomas tendem a ser semelhantes, independentemente do trauma por que elas passaram.
“Mulheres com algum trauma podem sentir medo, sensação de impotência ou um horror em relação a suas experiências e enfrentar recorrentes lembranças desagradáveis, flashbacks, pensamentos ruins ou pesadelos relacionados ao parto. Elas podem sentir-se atormentadas, ansiosas ou em pânico, quando expostas a coisas que as lembrem do acontecimento, e evitar qualquer coisa que as lembrem do episódio, o que pode incluir falar sobre o assunto”, diz Patrick O’Brien, um especialista em saúde mental materna do University College Hospital e porta-voz do Royal College de Obstetras e Ginecologistas do Reino Unido.
Um parto, caso seja traumático, pode vir a causar TEPT na mãe e até mesmo no pai da criança
Apesar desses efeitos potencialmente desestabilizadores, o TEPT pós-natal só foi reconhecido nos anos 1990, quando a Associação Americana de Psiquiatria mudou sua descrição do que constitui um acontecimento traumático. Originalmente, a associação considerava TEPT apenas “algo fora do campo da experiência humana comum”, mas depois mudou a definição para incluir um acontecimento em que a pessoa “testemunhou ou enfrentou uma ameaça física grave ou ferimento contra ela mesma ou outros e em que a pessoa reagiu com sentimentos de medo, impotência ou horror”.
Isso significava que, antes da mudança, dar à luz um bebê era considerado algo corriqueiro demais para ser altamente traumático – apesar dos ferimentos com reflexos para a vida toda, e às vezes até mortes, que mulheres podem enfrentar em consequência de pôr crianças no mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 803 mulheres morrem diariamente, em todo o mundo, em decorrência de complicações de gravidez e parto.
Há poucos números oficiais sobre quantas mulheres sofrem de TEPT pós-natal – e, devido à falta de reconhecimento dessa condição em mães, é difícil dizer se é um problema realmente comum. Alguns estudos estimam que 4% dos nascimentos levam a essa condição. Um estudo de 2003 concluiu que cerca de um terço das mães que sofrem um “parto traumático” – definido como aquele que envolve complicações, o uso de instrumentos para ajudar o parto ou risco de vida – acabam com TEPT.
Com o nascimento de 130 milhões de bebês a cada ano, isso significa que um número assustador de mulheres pode estar tentando lidar com o transtorno, com pouco ou nenhum reconhecimento. E o TEPT pós-natal pode não ser um problema apenas para mães. Estudos encontraram evidências de que pais também podem ter o problema, depois de testemunharem suas parceiras passarem por um parto traumático.
O fato é que quem passa por uma experiência dessas pode sentir um impacto longo em suas vidas. E os sintomas manifestam-se de muitas formas diferentes.
“Eu frequentemente revejo as imagens do parto na minha cabeça”, diz Leonnie Downes, uma mãe de Lancashire, no Reino Unido, que foi diagnosticada com TEPT, depois de achar que fosse morrer ao desenvolver sepse durante o trabalho de parto. “Eu me sentia constantemente ameaçada, uma sensação de insegurança constante.”
Lucy Webber, outra mulher que teve TEPT depois de dar à luz, em 2016, diz que passou a ter comportamentos obsessivos e ficou extremamente angustiada. “Eu não consigo tirar o meu bebê de vista ou deixar que qualquer outra pessoa o toque”, diz ela. “Eu tenho pensamentos sobre coisas ruins acontecendo com todas as pessoas que eu amo.”
Nem todas as mulheres que enfrentam partos difíceis desenvolvem TEPT. De acordo com Elizabeth Ford, da faculdade Queen Mary, parte da Universidade de Londres, e Susan Ayers, da Universidade de Sussex, o problema está bastante ligado à percepção de cada mulher sobre o que ela vivenciou.
“Mulheres que sentem falta de controle durante o parto ou que recebem pouco cuidado e apoio têm maiores riscos de desenvolver TEPT”, escrevem as pesquisadoras. As histórias de mulheres que desenvolveram TEPT depois de dar à luz parecem refletir isso.
Stephanie (nome fictício para proteger sua identidade) diz que recebeu pouco cuidado durante o parto e que as parteiras não demonstraram empatia nem compaixão. Num parto particularmente difícil, ela teve de ser fisicamente segurada pela equipe do hospital, enquanto dava à luz seu filho. “Ele nasceu completamente azul, foi levado para ser ressuscitado, e não me deram nenhuma informação sobre seu estado durante horas.”
Emma Svanberg, uma psicóloga clínica envolvida na campanha Make Births Better (Melhorem os Partos), diz que o problema é um assunto comum entre as mulheres com quem ela tem contato. “Uma reclamação que sempre ouvimos é sobre a falta de cuidado e compaixão da equipe do hospital”, diz ela.
Um estudo da pesquisadora Jennifer Patterson, da Universidade Napier, de Edimburgo, na Escócia (Reino Unido), indica que, apesar de as parteiras estarem normalmente cientes de que dar à luz pode ser algo traumático para mulheres, elas estão geralmente tão ocupadas que têm dificuldade em oferecer apoio e informação adequados a mães que possam estar sob risco de TEPT.
Alguns grupos de mulheres também são mais propensas a desenvolver TEPT mesmo antes de dar à luz. “Para mulheres que têm um histórico anterior de trauma, talvez vítimas de abuso sexual na infância e aquelas que tiveram anteriormente TEPT, depressão ou ansiedade , o risco de desenvolver TEPT é significativamente maior. Elas têm cinco vezes mais chance, diz Rebecca Moore, psiquiatra perinatal do NHS (sistema de saúde britânico) que trabalha no leste de Londres.
Processo pós-natal
O desafio do TEPT está no cérebro. Normalmente, lembranças são arquivadas no hipocampo do cérebro. Mas, se uma experiência é traumática, a mente entra num processo de disputa, e a parte do cérebro associada com medo, a amígdala cerebral, é acionada. Isso faz com que lembranças fiquem presas nessa parte primitiva do cérebro, em vez de serem arquivadas de forma segura.
Isso também significa que, quando alguma coisa faz a mãe se lembrar de sua experiência – como ver o nascimento de um bebê na televisão ou estar num hospital –, as lembranças traumáticas se parecem menos como lembranças e mais como um perigo iminente, disparando reações físicas, como ataques de pânico e flashbacks.
Com esse sistema de arquivamento quebrado, “você acaba ficando numa espécie de vai e volta dessa lembrança na sua cabeça, o tempo todo”, explica Moore. Isso pode causar mudanças estruturais no cérebro também. Pesquisadores da Universidade da Califórnia (EUA) estudaram os cérebros de 89 atuais e antigos integrantes com TEPT das Forças Armadas, usando equipamentos de varredura (scanners) para medir o volume de várias partes do cérebro. Os exames mostraram que a parte direita da amígdala nos cérebros de indivíduos com treinamento militar que sofriam de TEPT era 6% maior do que nas de seus colegas. A parte direita da amígdala é particularmente associada ao controle do medo e à aversão a estímulos negativos.
“Nós nos perguntamos se o tamanho da amígdala pode ser usado para determinar quem tem mais risco de desenvolver sintomas de TEPT depois de um trauma mediano no cérebro”, diz Joel Pieper, da Universidade da Califórnia, em San Diego, um dos profissionais que coordenaram o estudo.
Não se sabe ainda se mudanças semelhantes ocorrem nos cérebros de mulheres com TEPT pós-natal, mas os dados podem oferecer uma forma de diagnosticar aqueles que são afetados. A complexa mistura de sintomas experimentados por mulheres com TEPT depois do parto, no entanto, pode levar a atrasos e até mesmo diagnósticos errados.
Outra questão que atrapalha o diagnóstico de TEPT é o estigma associado à condição. Algumas mulheres sentem-se pouco a vontade ao falar abertamente sobre isso, por medo de serem vistas como fracassadas como mães ou por parecerem ingratas por terem tido um filho.
Svanberg acredita que o trauma de parto seja uma questão feminista. “Existe um campo de pesquisa enorme sobre a falta de reconhecimento das dores de mulheres, especialmente mulheres marginalizadas, e com frequência as vozes das mulheres são silenciadas”, diz ela. Muitos especialistas concordam que as mulheres simplesmente não recebem atenção ou a informação de que precisam para tomar as melhores decisões para elas e para suas famílias.
“Dar a mulheres os fatos sobre as diferentes formas de dar à luz, durante a gravidez, não é assustador, significa dar mais poder a elas”, acrescenta Moore. “As mulheres são capazes de tomar suas próprias decisões, mas raramente elas são informadas da forma certa sobre riscos e tratamentos quando o assunto é o parto.”
Svanberg acredita que o problema seja mais social. “As mulheres são geralmente tratadas como princesas quando estão grávidas, mas depois que o bebê nasce, todo mundo só quer saber do bebê”, diz ela. “Não é raro que novas mães sofrendo de alguma doença mental ouçam algo como ‘Você tem um bebê saudável, por que você está reclamando?’ E aí fica ainda mais difícil para as mulheres conseguirem coragem para pedir ajuda.”
Acredita-se que metade das mulheres que sofrem de problemas de saúde mental acabem não recebendo tratamento.
“Ainda existe vergonha em pedir ajuda, e as mulheres que têm dificuldade em enfrentar seus problemas têm medo de ser julgadas e criticadas”, afirma Moore.
As tentativas de esconder sua condição prejudicaram até as relações de Stephanie com o marido e sua filha mais velha. Seu próprio TEPT manifestou-se como uma forma de hipervigilância, deixando-a num estado permanente e exaustivo de alerta, sempre esperando o pior.
“Eu sabia que eu não estava bem, mas continuei escondendo isso durante meses”, diz Stephanie. “Eu não conseguia comer ou dormir. Eu me recusava a deixar qualquer pessoa cuidar do meu filho. Meus outros filhos tinham que ficar com o pai, porque eu estava ocupada demais com o meu bebê.”
“Meu relacionamento com a minha filha sofreu, e ela só tinha dois anos. Eu perdi toda a minha confiança na minha capacidade de ser mãe, enquanto antes eu estava sempre calma e levava as coisas de forma tranquila. Eu me afastei do meu marido e minha família.”
Disfunções sexuais
Um estudo coordenado pela Universidade de Sussex, da Inglaterra (Reino Unido), confirmou que as mulheres com TEPT registraram efeitos negativos nas relações com seus parceiros, incluindo disfunções sexuais, desentendimentos e culpa por acontecimentos relacionados ao parto. O laço entre mãe e bebê também foi seriamente afetado.
Quase todas as mulheres envolvidas na pesquisa registraram sentimentos iniciais de rejeição em relação ao bebê – e, embora isso tenha mudado com o passar do tempo, o estudo concluiu que o TEPT pós-parto pode ter efeitos “graves e duradouros” sobre mulheres e seus relacionamentos.
Em outros casos, as carreiras são abaladas. “O TEPT mudou minha vida”, diz Leonnie Downes, que trabalhava no serviço de ambulâncias da rede de saúde pública na Inglaterra. “Eu tinha uma boa carreira, mas tive de deixar meu emprego para virar autônoma e poder trabalhar de casa. Minha esposa teve de deixar seu emprego para se tornar minha cuidadora oficial. Agora, sou registrada como portadora de deficiência, e pela primeira vez temos de viver de benefícios do Estado para pessoas com deficiência.”
Moore diz que se encontra regularmente com mulheres que estão traumatizadas demais para voltar ao trabalho, incluindo paramédicos e parteiras. Lucy Webber é uma dessas parteiras. “Eu pedi demissão porque não conseguia lidar com o fato de não ser capaz de dar às mulheres o apoio de que elas precisavam.”
Mas existe ajuda disponível para mulheres que sofrem de TEPT pós-natal, contanto que elas tenham acesso a ela. O tratamento geralmente funciona com medicação ou terapia cognitivo-comportamental (TCC) – uma terapia verbal que visa a mudar comportamentos e formas de pensar.
Tratamentos
Outro tratamento possível é a Dessensibilização e Reprocessamento por Meio dos Movimentos Oculares (EMDR, na sigla em inglês). O EMDR às vezes envolve tapping (conhecido também como terapia EFT e que envolve dar palmadas em pontos específicos do corpo) ou o uso de música para ajudar o cérebro da paciente a lembrar que ela está no presente e não presa em algum momento do seu flashback. Estudos também mostraram que meditação transcendental pode ajudar veteranos de guerra com TEPT.
“Trauma ligado ao parto não é algo tão difícil de tratar, mas é muito difícil para mulheres e seus parceiros terem acesso ao apoio apropriado”, diz Svanberg, alertando que muitas mulheres recebem um diagnóstico errado de depressão pós-parto – uma condição debilitadora diferente, que pode ocorrer após o nascimento de uma criança, mas que apresenta outro conjunto de sintomas.
No Reino Unido, o acesso ao tratamento oferecido pelo sistema público de saúde, o NHS, pode ser difícil em algumas partes do país. Em outros lugares, como nos Estados Unidos, os preços chegam a ser proibitivos. Para muitos, a melhor prevenção para TEPT pós-parto seria a redução de riscos, além de um melhor treinamento de parteiras e obstetras.
“O sistema inteiro contribui para o trauma”, diz Moore. “Com frequência mulheres são atendidas por funcionários da linha de frente, que fazem seu trabalho, mas não com muita compaixão, porque estão esgotados.” A campanha Melhorem os Partos tenta combater essa deficiência com o treinamento de profissionais de medicina. Pequenas mudanças que não custam nada, como o uso de linguagem mais carinhosa e menos jargões médicos, e podem fazer toda diferença para impedir que mulheres tenham problemas físicos e mentais após o parto.
A maioria das mulheres concorda que dar à luz é um acontecimento transformador e marcante. Com o apoio correto, o saldo positivo mesmo dos nascimentos mais traumáticos. Lucy Webber diz que sua experiência a ajudou a se tornar uma mãe mais carinhosa, e Stephanie inclusive decidiu se tornar ela mesma uma parteira.
Depois de quase dois anos, a minha própria vida está gradativamente ficando mais fácil, mas encaro o aniversário da minha filha com uma mescla de entusiasmo e ansiedade, por causa das lembranças e reações físicas que a data sem dúvida vai me trazer. Ela é o melhor presente que pude ganhar, e seu aniversário também será uma comemoração de o quanto nós avançamos desde sua chegada.
Além do pequeno violâo de brinquedo que daremos a ela, talvez o melhor presente que eu possa dar é fazer minha pequena parte ao desafiar as normas sobre o que significa dar à luz e ser mãe, para que traumas de parto e o TEPT pós-natal possam ser enfrentados de forma aberta.
Da BBC Brasil