Uma vaga com bom salário, possibilidades rápidas de ascensão e inserida no mercado mais promissor do mundo. No Brasil, quase um quarto dos jovens está atualmente sem estudar e trabalhar, e cerca de 30% desse total é composto por mulheres, segundo o IBGE. Em um cenário desanimador, a linguagem inicialmente incompreensível de códigos pode se transformar em uma alternativa para um futuro compensador, que tende a buscar cada vez mais trabalhadores do setor tecnológico. Parece perfeito, até elas esbarrarem no sexismo.
Por mais que existam – e sobrem – vagas na área de tecnologia, as mulheres ainda são excluídas das oportunidades por não serem vistas com naturalidade como capacitadas para a área, diz Iana Chan, CEO da PrograMaria, startup social que visa ensinar e impulsionar mulheres na área da programação.
“Tem o fenômeno do viés inconsciente – que é essa ideia de que o estereótipo de uma pessoa que trabalha na área de tecnologia é de um homem, branco, heterossexual, cis. Os grupos minoritários são deixados de lado principalmente quando os RHs não estão cientes que esse processo existe”, comenta Chan.
Quebrar o ciclo em uma das áreas mais promissoras para o futuro – até 2024, de acordo com a Brascom, vão faltar 420 mil profissionais na área de tecnologia no Brasil – passa, também, por uma exigência extra direcionada a candidatas, com gênero definido.
“Ao mesmo tempo que tem oportunidades, as pessoas dificultam. A área de desenvolvimento [de software] é extremamente machista e branca”, diz Laura Lemos, ex-designer que hoje atua como Analista de Experiência do Usuário na ThoughtWorks, uma multinacional de consultoria de softwares.
Ex-aluna de um dos módulos promovidos pelo PrograMaria, Lemos se afeiçoou à área mesmo duvidando que um desafio se transformaria em sua carreira. Hoje, vê que a diversidade é necessária para a área. “As pessoas deveriam estar muito interessadas em construir tecnologia. Se o futuro for construído pelas mesmas mãos, vai ser muito menos completo do que poderia ser”, diz.
Como exemplo, Lemos cita um caso de sensores de movimento em saboneteiras eletrônicas que, desenvolvidas por homens brancos, não reconhecia tons de pele negros para liberar o sabonete quando solicitado. Os robôs dos sistemas operacionais também entrar na lista de projetos desenvolvidos por homens e que são problemáticos. Siri (iOS, dos iPhones), Alexa (Amazon) e Cortana (Microsoft) foram considerados ‘sexistas’ pela Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) por suas respostas ‘submissas e servis’, correspondendo a um estereótipo de gênero feminino. Siri, por exemplo, respondia “Eu ficaria vermelha, se pudesse” aos usuários que a chamassem de “bitch”, xingamento equivalente a ‘vadia’ em inglês.
“Não se pode fazer um produto para todos sendo que somente uma parcela da população participa dele. Esses são chamados de ‘algoritmos preconceituosos’ ”, diz Maria Isabel Dias, uma estudante de 17 anos que está prestes a embarcar rumo a Singapura, país asiático que é o 4º mais rico do mundo, para concluir o ensino médio depois de ter ganhado uma bolsa de estudos. O incentivo inicial para a jovem de escola pública entrar na área foi um programa do Google chamado ‘Mind the Gap’, que visa incentivar garotas a estudarem tecnologia.
“Ainda existe muita estranheza. Eu não conheço nenhuma amiga na escola que queira essa área. Mesmo com vários eventos para ajudar a disseminar cada vez mais, ainda está em progresso”, diz ela, que só conseguiu o primeiro computador porque a mãe “parcelou em 1000 vezes” quando Maria Isabel precisou fazer uma apresentação da iniciação científica, promovida pela UFABC para incentivar a pesquisa no ensino médio.
A estudante reconhece que tal distância também se deve à pouca estrutura e formação para a área por parte dos sistemas de ensino, mesmo quando mais de 138 milhões de pessoas, segundo o IBGE, possuem um smartphone no País – essencialmente desenvolvido a partir da programação. “A minha ETEC [Escola Técnica Estadual de São Paulo] é a maior do Estado, mas para um curso de mecânica, por exemplo, que geralmente tem 3 mulheres por sala, a gente tem maquinário que tem data da 2ª Guerra Mundial, de 1942”, relatou.
Diversidade na prática
Uma pesquisa do Banco Mundial feita com jovens pernambucanos em 2018 apontou que, entre os principais motivos para não se trabalhar e estudar, estavam a impossibilidade de conciliar emprego e aulas, poucos recursos financeiros ou qualificação, e a falta de transporte público seguro para locomoção entre uma atividade e outra. Mulheres grávidas também elencam a discriminação por parte dos patrões.
Para Maria Rita Casagrande, desenvolvedora e uma das idealizadoras do PretaLAB, um projeto que visa promover o debate sobre representatividade no universo da inovação, “bons conhecimentos técnicos são tão ou mais importantes” do que formações específicas em Ciência da Computação, por exemplo, um curso de acesso não tão popular.
“Com o crescimento das startups, surge uma outra oportunidade para ingressar na área e encontrar, em alguns casos, um ambiente mais diverso e com o entendimento de que é a partir desta diversidade e de novos olhares que é possível inovar”, completa Casagrande.
Ainda no começo de sua trajetória, Maria Isabel Dias sonha em entrar na área de neurociência computacional para desenvolver meios mais efetivos de pesquisa na área de dependência química, assunto que percebe deficitário nos tratos dados pelo País. Não apenas, também quer incentivar mais mulheres a participarem desse mercado. “Acho que é uma obrigação: quando você se interessa pela área e uma mulher te dá a mão, você precisa dar a mão para pelo menos mais uma mulher e assim vai”, diz.
Iana Chan analisa que a diversidade já é um diferencial estratégico básico, com pesquisas que apontam melhores taxas de retenção, inovação e engajamento dos funcionários, além de maiores resultados financeiros para as empresas. “Não adianta só atrair as mulheres se você não conseguir retê-las. É preciso transformar esse discurso em prática”, completa.
Da Carta Capital