Inês Etienne Romeu, torturada e estuprada na ditadura militar |
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) decidiu aceitar a denúncia feita pelo Ministério Público Federal do Rio contra o sargento reformado do Exército Antônio Waneir Pinheiro de Lima, que utilizava o codinome de “Camarão”, acusado de cometer sequestro, cárcere privado e estupro da historiadora Inês Etienne Romeu na chamada “Casa da Morte”, uma prisão clandestina que funcionava em Petrópolis (RJ), durante a ditadura militar. Com isso, ele se torna réu. O TRF-2 reformou nesta quarta-feira uma decisão da 1ª Vara Federal Criminal de Petrópolis que havia rejeitado a denúncia. É o primeiro processo criminal de estupro aberto contra militares por crimes cometidos durante a ditadura.
Foram 2 votos a favor da abertura do processo contra um contrário. Votaram a favor os desembargadores Gustavo Arruda Macedo e Simone Schreiber e foi contra o desembargador Paulo Espírito Santo, relator do processo. Os magistrados acolheram o argumento do MPF de que o caso se trata de crime contra a humanidade imprescritível e não passível de anistia.
Depois de passar mais de quatro décadas escondido sob a alcunha de “Camarão”, O GLOBO revelou em novembro de 2014 o nome do carcereiro da Casa da Morte de Petrópolis, um dos mais bárbaros centros de tortura do regime militar brasileiro. Até então tudo que se sabia sobre ele era uma descrição feita por Inês ainda em 1979. “Baixo, claro, natural do Ceará. Sua família reside em Fortaleza. Seu nome real é Wantuir ou Wantuil”, contou ela, à época. Inês acrescentou ainda que ele disse ter feito parte da segurança do presidente João Goulart, antes do golpe militar. Por quase três anos, a reportagem pesquisou em arquivos do Exército e com integrantes da Força as indicações até que chegou ao nome de Antonio Waneir Pinheiro Lima.
Inês Etienne Romeu foi presa em São Paulo e depois levada para a Casa da Morte, onde ficou 96 dias sob tortura. Ela morreu em abril de 2015. A decisão foi tomada pela 1ª turma especializada do tribunal. Anita Romeu, irmã de Inês, ficou bastante emocionada com a decisão e ressaltou o caráter machista das agressões.
— Tudo isso é muito importante. A contribuição mais importante que a Inês deu foi denunciar essas agressões machistas que ela sofreu. Os militares viam nela uma mulher a ser humilhada. Fico contente porque é um reconhecimento da coragem dela. Eu me orgulho dela — disse Anita.
Lúcia Romeu, outra irmã de Inês, chegou a acompanhá-la como jornalista durante a descoberta do local onde ficava a casa em Petrópolis no ano de 1981. Para ela, mesmo com o passar dos anos, a decisão do TRF-2 hoje é histórica.
— Estou realmente emocionada e o que posso dizer é que se confirmou o dito; a Justiça tarda, mas não falha. E espero que o Camarão seja condenado, de acordo com a lei — afirmou Lúcia.
O MPF, que denunciou Lima em 2016, se opôs ao entendimento da Justiça Federal em Petrópolis de que o caso se enquadrava na Lei da Anistia. O argumento central dos procuradores é que o caso configura crime de lesa-humanidade e segundo o Estatuto de Roma (ratificado pelo Brasil), seria imprescritíveis e não sujeito à anistia. Para o MPF, a palavra da vítima devia ser considerada, ainda mais em crime sexual como o estupro.
Ao proferir a decisão, a desembargadora Simone Schreiber descreveu que o Brasil é signatário de tratados internacionais que reconhecem e estupro, execução sumária, tortura, entre outros, cometidos em um contexto ditatorial como crimes contra a humanidade. Por isso, segundo ela, no caso denunciado por Inês, a Lei de Anistia não se aplica. Ela também citou uma “relutância” do judiciário em lidar com o tema e disse que a situação deixa consequências.
— O país (Brasil) e mais especificamente o poder judiciário relutam em lidar com o seu passado e adotar um modelo transicional adequado às obrigações jurídicas assumidas em um plano internacional. Essa dificuldade de enfrentar as graves violações cometidas em nome do Estado estão amparadas em uma cultura de esquecimento da qual algumas das consequências reconhecidas pela comunidade internacional são a perpetuação das estruturas de poder autoritárias e legitimação de violências policiais e torturas cometidas nos dias de hoje contra a população civil. Assim, diante da existência de conjunto probatório mínimo, ao embasar o recebimento da denúncia, e do reconhecimento do impacto das normas de direito internacional interno de que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis e inanistiáveis, há que ser recebida a denúncia — afirmou Schreiber, em seu voto.
A posição também foi defendida pelo desembargador em exercício Gustavo Arruda Macedo.
— A pessoa (Inês) teria sido vítima de diversos crimes de extrema gravidade no âmbito de um período de exceção do nosso país. Entendo que está caracterizado um crime de lesa-humanidade — disse Macedo, no voto. — Consta até depoimento prestado pelo próprio denunciado no sentido de que era o caseiro da famosa “Casa da Morte”. Adiro ao voto da desembargadora Simone não só da validade como da força probatória do depoimento da vítima em um delito praticado dessa natureza de extrema gravidade — completou ele. Antonio Waneir Pinheiro Lima ainda não possui defesa constituída e não foi localizado para falar sobre a abertura do processo.
A prisão em Petrópolis foi usada pelo Centro de Informações do Exército (CIE) como um aparelho clandestino de tortura, durante o regime militar, e foi localizado pela própria Inês Etienne em 1981. Ela foi a única presa política a sair viva dessa casa.
No depoimento que ela prestou à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 1979, ela denunciou que foi estuprada por Lima duas vezes no período em que esteve na casa. Lima atuou na casa em um período no qual cerca de 20 oposicionistas desapareceram. Um deles é Carlos Alberto Soares de Freitas, ex-dirigente da VAR-Palmares e amigo de Inês e da ex-presidente Dilma Rousseff. De acordo com a Inês, Lima confessou que Beto, como era chamado pelos amigos, foi o primeiro prisioneiro da Casa da Morte. “Disse-me que Breno foi o primeiro terrorista que esteve preso naquela casa”, descreveu ela ainda em 1979.
Inês respondeu a dois processos na Justiça Militar durante a ditadura e chegou a ser condenada à prisão perpétua devido à participação no sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher em1970. Depois, o processo foi revisado e a pena foi reduzida. Ficou presa de 1971 até ser posta em liberdade em agosto de 1979, depois da aprovação da Lei de Anistia.
Lima vivia até pouco tempo atrás em Araruama, na região dos Lagos e contava abertamente aos vizinhos sobre o tempo no Exército e até sobre o período em que foi segurança de João Goulart. Camarão foi recrutado para a Casa da Morte pelo coronel reformado Paulo Malhães, falecido em abril de 2014. O oficial demonstrava intimidade com o antigo subordinado e se negou diversas vezes a fornecer a identificação do soldado. Homem de confiança de Malhães, Camarão esteve com o coronel em diversas missões importantes do Exército. Entre elas, aquela que ficou conhecida como a ‘Operação Juriti ou Medianeira’ e que teve como objetivo a captura e morte de Onofre Pinto, líder da VPR, e de outros cinco militantes em Foz do Iguaçu, no Paraná.
do site O Globo