A filha da frentista Ceumi Bender, 31, tentou se matar no ano passado, aos 13 anos. O sobrinho da professora de português *Carolina da Silva, 32, vinha avisando que tiraria a própria vida desde os 6 anos. E o fez, aos 15.
“Desde muito novo, ele falava: ‘Tia, a minha vida é ruim demais, não tem sentido viver'”, diz *Carolina, que vive em Belo Horizonte (MG) e pediu para não ter seu nome identificado.
Em um manual de prevenção ao suicídio, a OMS (Organização Mundial da Saúde) orienta profissionais de saúde a evitar descrições detalhadas dos métodos usados. Eles podem servir de gatilho para quem está em sofrimento emocional. A frentista Ceumi Bender acredita que de tanto olhar tutoriais sobre como se matar –sim, isso existe na internet– sua única filha decidiu tomar uma atitude extrema.
A filha de Ceumi cresceu em Francisco Beltrão (PR), sem a presença do pai. A família se separou quando ela tinha cinco anos. No início de 2018, lembra Ceumi, a menina que gostava de se maquiar e cozinhar se afastou da família e dos amigos e mal falava com as pessoas. A mãe logo descobriu feridas em seu braço e a levou a uma psicóloga. A filha disse que fazia isso porque andava irritada e prometeu não se machucar mais.
Ceumi com a filha, que fará 15 anos em outubro |
Na mesma época, a adolescente decidiu que queria ter mais contato com o pai e pediu para morar um tempo na casa dele, em Santa Catarina. Ceumi fala que a experiência não durou nem três meses. A menina voltou mais magra e triste: “Ela reclamava que o pai era duro, a obrigava a comer toda a comida do prato ainda que não quisesse, e lhe tirou o celular. E chegou a falar para o avô que tinha vontade de morrer porque ninguém gostava dela”. A garota voltou para casa em julho. Crismou-se na Igreja Católica num domingo. Na quarta seguinte, passou o dia inteiro ao celular, e Ceumi decidiu que iria pedir o aparelho e a senha da filha para vasculhar tudo. Faria isso no dia seguinte.
Antes de dormirem, comeram pipoca. Pela manhã, a encontrou inconsciente: “Depois que tudo aconteceu, vi que ela entrava em sites que ensinavam métodos de suicídio. E outras imagens de adolescentes feridos, compartilhando automutilação. Não tive coragem de assistir a tudo”.
A adolescente ficou duas semanas em coma induzido. Ao todo, passou 40 dias internada. Saiu com a fala e os movimentos de braços e pernas prejudicados. Levou oito meses para voltar a andar. Também não se recorda de muitos momentos da vida, incluindo os do dia da tragédia.
Hoje, aos 14 anos, a garota consegue frequentar a escola, mas recebe atenção especial de uma professora auxiliar. Os amigos foram desaparecendo, e Ceumir diz que a menina sofre bullying e é constantemente chamada dos mais variados nomes devido às sequelas.
A escola, que é pública, nunca procurou a mãe para conversar sobre o que houve. Enquanto isso, a prefeitura ajuda com uma psicóloga, que as duas visitam uma vez por semana. Também oferece fisioterapia e aulas de canto e artesanato. A menina precisaria ainda de uma fonoaudióloga, que a mãe não tem condições de pagar.
A menina toma remédio para controle de humor, e a mãe, para ansiedade. Dormem a maior parte do tempo juntas. “Tem sido muito difícil, porque até hoje moramos na mesma casa e toda hora me lembro de tudo. Minha filha está igual a um bebê e anda muito envergonhada. Os amigos não a convidam mais para a casa deles e sinto preconceito até.
Atenção aos possíveis gatilhos
Numa pesquisa sobre lesões auto provocadas por adolescentes, feita em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, em 2018, a socióloga Dayse Miranda identificou o bullying e a perda trágica de um ente querido como algumas das razões que levam jovens a tentarem se matar.
A pesquisadora do Gepesp (Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção), que surgiu de uma parceria da UERJ com a Polícia Militar do Rio, perguntou, de forma anônima, a 1.279 estudantes de 9 a 15 anos se, em algum momento, eles pensaram ou tentaram o suicídio e a automutilação. Do total, 288 responderam “sim” para uma dessas situações. Uma parte deles tentou se matar (12%). Outros praticaram automutilações sem intenção suicida (8%) ou tiveram pensamentos suicidas (3%).
Duque de Caxias tem uma das maiores taxas de homicídios do estado do Rio de Janeiro, segundo o Atlas da Violência. E a pesquisa mostra justamente que o sofrimento emocional da maioria desses jovens está diretamente ligado a esse cenário.
“Esses jovens têm um problema muito grande com a violência doméstica e com a morte. Ver corpos, ter contato com a violência faz parte do dia a dia deles”, diz Dayse.
Mas ela destaca que esses gatilhos são característicos desse grupo ao qual teve acesso. É muito difícil chegar a um padrão quando falamos no problema da juventude em geral. “O gatilho da pessoa de Caxias não é o mesmo do jovem do Leblon, na zona sul, embora a dor da depressão seja a mesma. O que dispara o sofrimento varia segundo o grupo socioeconômico e cultural.”
Falta de amparo do poder público
A crise amorosa está entre os fatores mais citados por jovens na pesquisa de Dayse, porque, ela diz, o adolescente tem muita dificuldade em lidar com o rompimento:
“Entrevistei uma menina que, aos quatro anos, perdeu o irmão. Ela desenvolveu sintomas de estresse pós- traumático, mas nunca foi tratada. Quando ficou grávida, aos 13, foi abandonada pelo namorado e começou a se auto mutilar”
A escola pública onde o sobrinho da professora de português *Carolina da Silva estudou não soube lidar com os rompantes de agressão do adolescente, nas palavras dela. Ele se matou em abril, aos 15 anos. A vida do garoto foi marcada por violência e abandono: a mãe o entregou à avó paterna quando ele tinha nove meses de vida. O pai o visitava e o agredia às vezes.
Carolina morava no fundo da casa onde o adolescente vivia. Ela descreve o menino como uma pessoa carente demais, e que carregava uma tristeza muito grande por não ter uma mãe. A mulher, viciada em drogas, aparecia para visitá-lo, às vezes, quando estava sóbria.
Na escola e na rua, o garoto era agressivo. Batia e apanhava dos colegas do sexto ano. Passou então a ver um psicólogo. Por isso, acabou sendo chamado de louco e estranho pelos colegas. Quando ele revidava o bullying, os professores colocavam o garoto de castigo. Em casa, a avó tirava o celular e os jogos eletrônicos para tentar corrigi-lo, enquanto a tia buscava dar conselhos, animá-lo.
Carolina chora. Agora, a atenção ficou redobrada em casa. Ela tem um casal de filhos adolescentes.
“A gente hoje vive tão refém de redes sociais e do trabalho que esquece um pouco da casa, da família. Passei a dar mais atenção para meu filho, a perguntar como ele está se sentindo. Na escola, quando peço para os alunos escreverem uma redação, muitos relatam violência doméstica e eu encaminho à direção da escola. Precisamos ouvi-los mais.”
* Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos envolvidos
Para pedir ajuda, o Ministério da Saúde oferece o serviço de ligações para o CVV (Centro de Valorização da Vida), que auxilia na prevenção do suicídio e dá atenção a pessoas que sofrem de ansiedade e depressão. Para falar com um voluntário treinado para esse tipo de situação, basta discar o número 188 pelo telefone. A assistência também é prestada pessoalmente, por e-mail ou chat no site (cvv.org.br).