O maior estudo já feito acerca da influência do genoma sobre a homossexualidade, envolvendo meio milhão de pessoas, sugere que essa característica é tão multifacetada quanto outros traços complexos da natureza humana, como a inteligência ou o talento para esportes.
Ao que tudo indica, interações complicadas entre milhares de genes e o ambiente em que as pessoas se desenvolvem ajudam a entender por que alguém se relaciona com parceiros do mesmo sexo, diz a pesquisa, coordenada por pesquisadores dos EUA e da Europa e publicada na revista Science.
Os resultados devem sepultar de vez a busca por um único “gene gay” (algo já desacreditado na comunidade científica há tempos). Também inviabilizam tentativas de usar dados de DNA para identificar pessoas com preferências homossexuais ou métodos biológicos para reverter tais preferências, simplesmente porque elas dependem de fatores variados e complexos demais para serem alterados.
“Nossos dados mostram claramente que esse comportamento é uma parte natural da biologia humana e que, ao mesmo tempo, inclui uma enorme diversidade”, resume Benjamin Neale, pesquisador do Hospital Geral de Massachusetts e do Instituto Broad (EUA).
Neale é um dos coordenadores do estudo e participou de uma entrevista coletiva por telefone sobre os resultados, organizada pela Science. Também assinam a pesquisa o italiano Andrea Ganna, colega de Neale no Instituto Broad, e Fah Sathirapongsasuti, pesquisador de origem tailandesa que trabalha na empresa de genômica 23andMe, na Califórnia.
“Eu sou homossexual e me lembro de como era ficar pesquisando sobre o ‘gene gay’ na internet quando mais novo”, contou Fah. “Na época, falava-se muito sobre uma região do cromossomo X que seria ligada a essa característica. Como homens recebem seu cromossomo X pelo lado materno, eu costumava dizer que a ‘culpa’ era da minha mãe. Agora sei que a coisa é muito mais complexa, e que tanto meu pai quanto minha mãe têm ‘culpa’ nessa história”, brinca ele.
O mapeamento se valeu de uma técnica muito usada nos últimos anos para encontrar associações entre amplas áreas do genoma e determinada característica.
Em suma, os pesquisadores fazem uma varredura no DNA dos voluntários, usando como pontos de referência numerosas variações de pequena escala, correspondentes a trocas de uma única “letra” química do material genético (o genoma de cada pessoa contém cerca de 3 bilhões de pares dessas “letras”).
Essas variantes são conhecidas como SNPs (sigla inglesa de “polimorfismos de nucleotídeo único”; pronuncia-se “snips”). Por si mesmas, podem não significar nada para o organismo, ou então podem mudar a “receita” para a produção de moléculas das células, mais ou menos como trocar uma única letra muda o sentido da expressão “muito pouco” para “muito louco”.
A presença de milhões de SNPs espalhados pelo genoma pode ser comparada com a presença de certo traço —cor do cabelo ou dos olhos, peso, interesse por música etc. A partir daí, podem surgir associações estatísticas: certo SNP é mais comum em pessoas de olhos azuis ou que gostam de brócolis (ambas são características influenciadas pela genética), digamos. Por fim, mais análises estatísticas e biológicas tentam confirmar se o elo é real e como funciona.
A equipe do novo estudo decidiu dividir os voluntários cujo DNA foi analisado em dois grupos: de um lado, os que declaravam só se relacionar com pessoas de sexo diferente do seu; de outro, todos os que afirmavam ter tido relações com gente do mesmo sexo alguma vez.
“É importante ressaltar que estamos avaliando o comportamento sexual, não a identidade de gênero. Além disso, queríamos levar em conta a diversidade desse comportamento”, explica Neale.
As principais fontes de informações sobre o DNA foram o UK Biobank, banco de dados biológicos sem fins lucrativos do Reino Unido, e as amostras da 23andMe (em geral, americanos), que vêm de pessoas que compram um kit de análises genômicas de forma recreativa, para conhecer melhor sua própria herança genética. No caso do UK Biobank, 4,1% dos homens e 2,8% das mulheres declararam já ter tido relações homossexuais; a proporção geral na amostragem da 23andMe foi de 18,9%. No total, 447.522 pessoas foram incluídas na análise.
Quando o efeito de todos os SNPs é combinado na análise, os cientistas estimam que entre 8% e 25% da diferença entre as pessoas no comportamento homossexual é explicada por essas variantes genéticas.
É importante frisar duas coisas: esses números se referem às diferenças na população como um todo, e não a indivíduos isolados; e os SNPs não correspondem ao total da variabilidade do genoma. Outros elementos do DNA, como o número de cópias de genes ou mudanças em trechos maiores do que uma só letra, também podem ter algum impacto ainda desconhecido. Com efeito, estudos com gêmeos idênticos sugerem uma influência genética entre 30% e 50% para o comportamento homossexual.
Além disso, é muito difícil identificar lugares específicos do genoma que tenham influência mensurável sobre o comportamento homossexual, o que reforça a ideia de que são milhares de genes, cada um deles com um efeito minúsculo, os responsáveis por essa influência.
Após muito escarafunchar, o grupo de pesquisa achou apenas cinco regiões do genoma com algum impacto claro —duas para ambos os sexos, uma apenas para mulheres que já fizeram sexo com outras mulheres e duas para homens que já fizeram sexo com homens. Geneticamente, portanto, é bastante possível que ser gay seja um fenômeno bem diferente de ser lésbica. Ainda assim, o efeito somado desses SNPs explicaria menos de 1% das diferenças entre as pessoas nesse quesito.
De qualquer modo, a análise detalhada desses SNPs mostra alguma lógica. No caso dos ligados ao comportamento homossexual masculino, por exemplo, há uma variante associada a genes que influenciam a detecção de moléculas de cheiro, e sabe-se que tais moléculas olfativas são importantes para a atração sexual. O outro SNP está associado à calvície masculina, um processo deflagrado pelos hormônios sexuais —os quais, é claro, também influenciam o interesse por parceiros.
Os pesquisadores destacam que o estudo tem uma série de limitações importantes. A principal delas é a falta de diversidade étnica na amostragem, já que os dados vêm de populações de origem majoritariamente europeia. Também há o fato de que os doadores de DNA são, em geral, pessoas mais velhas, com idade média superior a 40 anos. Isso pode ter diminuído a probabilidade de que elas relatassem experiências homossexuais, por terem crescido em ambientes menos abertos a esse tipo de relacionamento.
As influências ambientais, que se somam às influências genéticas para produzir o comportamento sexual humano, podem ser não apenas sociais e culturais como também biológicas. Há alguns indícios, por exemplo, que os hormônios produzidos pelo organismo materno durante a gestação também podem influenciar a orientação sexual.
Da Folha de SP