Sair do trabalho suado, com o macacão de mecânico e se encontrar com dezenas de homens autores de agressão contra a mulher parecia terrível para Fábio Alberto Alves, de 53 anos. “Cheguei totalmente revoltado. Contra a minha vontade e contra todos”, diz. “Estava derrotado, querendo acabar com o mundo”, relata.
Em junho do ano passado, ele foi condenado a 2 meses e 15 dias de prisão pela lei Maria da Penha por ter agredido a companheira. Como não tinha passagem pela prisão, possuía emprego e residência fixa, Fábio pode cumprir a pena com a participação no grupo socioeducativo que discute novas masculinidades “E agora José?”, que funciona na Defensoria Pública de Santo André, na região ABC Paulista. Hoje, Fábio está no 12º encontro, metade do necessário estipulado pela Justiça.
Ele conta que o que o levou para o grupo foi um “desentendimento com a mulher” em junho do ano passado. “Tinha tomado uns negócios, peguei ela pelo braço, ela caiu no chão… Teve uma ocorrência pela Maria da Penha”, diz. “Ela queria me dar uma lição e se separou de mim, mas agiu honestamente. É que na hora tudo passa pela cabeça: ciúmes, intriga e revolta.”
Fábio chegou a ser afastado da companheira por medida cautelar. Até que, a filha do casal o procurou para conversar. “Foi aí que recomeçamos.” Quando decidiram voltar, ele já havia frequentado alguns encontros. “Ouvi o palestrante explicar que a mulher se sujeitar ao homem era uma visão arcaica, mas na minha cabeça, sempre achei que tinha que buscar sustento e a mulher, cuidar da casa. Isso começou a mexer comigo”, afirma.
Uma das propostas do grupo reflexivo “E agora, José é desconstruir a violência como natural e inerente aos homens. “Tentamos mostrar que gênero é algo construído socialmente”, diz Reginaldo Bombini, mediador de conflitos do grupo desde 2009. “Começamos a falar sobre os brinquedos atribuídos a meninos e meninas. Com isso, o homem vai se vendo como dono do espaço público e a mulher relacionada aos espaços privados e cuidados.”
No decorrer dos primeiros encontros, acompanhados de psicólogos e terapeutas, Fábio afirma ter se reconhecido como um homem machista. “Eu era um cara muito seco, sempre achei que porque eu trazia o sustento, todo mundo tinha que seguir as minhas ordens. Hoje, entendo que homens e mulheres tem que ser tratados de forma igual.”
Os encontros são compostos por pessoas que escutam os depoimentos dos participantes e ajudam a repensar o uso da violência. Os chamados “facilitadores” não são informados previamente sobre o delito cometido pelos autores de agressão. A partir da conversa com o grupo que as histórias vêm à tona. “É por meio do resgate das memórias que os homens têm a oportunidade de entender o que viveram e resignificar sua masculinidade.” Isso porque, nesses espaços, existe a compreensão de que um homem que cometeu uma agressão ou abuso não necessariamente irá repetir o mesmo padrão de comportamento. “Eles percebem que podem falar de suas fraquezas e desabafar sem serem julgados.” Ainda assim, o processo é repleto de dificuldades.
A pedagoga e especialista em Direitos Humanos pela Universidade Federal do ABC, Patrícia Ramos Silva dos Santos, pesquisa grupos reflexivos para homens autores de agressão há dois anos e afirma que a ida compulsória aos espaços de debate impacta sobre a masculinidade. “Muitos relutam em vários momentos, quase sempre dizem que foi a mulher que provocou a violência e questionam porque elas não são igualmente punidas”, diz. “No primeiro dia eles não são obrigados a contar o que viveram e percebemos que sempre tentam justificar com mágoa.” A especialista, que acompanhou o grupo por um mês, afirma que quando começam a compartilhar as experiências é comum atribuírem a culpa à mulher. “Em São Paulo, dificilmente teremos um discurso de que a mulher realmente apanhou”, explica. “No Maranhão, por exemplo, o discurso é de que agressão teria o objetivo de educar e corrigir. São narrativas completamente diferentes.”
A mensagem que o grupo tenta passar, explica Patrícia, é aprender a superar conflitos sem o uso de violência. “Eles aprendem a sair da discussão e a não entrar em disputas de poder.” Ela afirma ainda que é comum que os homens autores de agressão disputem posições de vítima com as mulheres. “A gente sempre tenta jogar a culpa nos outros, mas não estamos lá a troco de nada”, diz Fábio.
“E agora José?”
A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou. Para evitar que a luz se apague e o autor da agressão seja apenas condenado à reclusão sem um trabalho reflexivo, o grupo começou a debater em 2014 novas masculinidades entre homens responsabilizados pela lei Maria da Penha. Hoje, existem dois grupos com 20 homens inscritos em cada. “No início, eles pensam em um lugar repleto de bandidos e monstros de programas de tevê. Acham que serão julgados, humilhados e constrangidos”, diz Bombini. “Depois começam a se identificar com pais, maridos e aposentados.”
O grupo possui uma média de 200 homens em atendimento e 50 na lista de espera. Nesse período, foram registradas duas reincidências em casos de desrespeito a medida protetiva. Os encontros, diz Bombini, são oportunidades para os homens se apropriarem de um novo referencial masculino. De acordo com ele, o custo mensal de um homem no grupo é de R$ 150, com taxa de reincidência de 1%. No modelo estadual paulista, o preso custa ao governo R$ 2.400 com taxa de reincidência entre 70% e 75%. Isso significa dizer que trabalhar o homem que cometeu violência doméstica é 16 vezes mais barato do que encaminhá-lo ao sistema prisional.
Aos poucos, os participantes passam a se sentir mais dispostos a compartilhar experiências. “Eles chegam com o discurso muito rígido, ficam silenciosos até o 10º encontro e só depois começam a se soltar”, diz o mediador. “Ao chegar, um deles disse que tinha vontade de jogar uma bomba. Não conseguia assumir que tinha responsabilidade. Só depois que a mudança começou a acontecer.”
“Me arrependo desde o momento em que fui intimado”
O vendedor Marcos Antônio Anhas, de 45 anos, chegou ao “E agora José” em 2015. “Pensei que fosse um bicho de sete cabeças”, diz. Ele conta que viveu um relacionamento de cinco anos com a ex-companheira, que teria usado seu dinheiro para reformar a casa. “Foi nessa hora que comecei a ficar agressivo, peguei toda a areia e espalhei na casa dela.” A ex-mulher registrou um boletim de ocorrência por agressão verbal e Marcos foi direcionado por uma juíza ao grupo reflexivo. “Uma das experiências mais marcantes foi assistir a uma peça de teatro com cenas de violência entre casal. Mexeu muito comigo”, diz.
Marcos, que também é locutor já foi a todos os encontros e agora deve voltar ao grupo para dar palestras e dividir as experiências com os colegas. “Falta de entendimento dos homens sobre o que é machismo. Sempre fui contra violência entre homens e mulheres”, diz. Depois dos encontros, ele diz ter mudado a forma de reagir aos desentendimentos com ex-mulher. “Ela entrou no meu carro com uma faca, quebrou tudo e liguei para meu filho para ele me ajudar. Não queria bater nela. Ela foi no shopping onde eu trabalho e me deu dois tapas na cara. Tinha fé de que ela ia melhorar.”
Há três anos, ele vive um novo relacionamento. Eliana do Prado, de 44 anos, a atual companheira, sabe que o marido passou pelo grupo de homens responsabilizados pela lei Maria da Penha. “Tem agressor que é mau caráter e tem agressor que se defende de uma forma agressiva”, diz ela, que é vítima de violência doméstica do ex-companheiro. No relacionamento anterior, Eliana se lembra de ter registrado pelo menos seis boletins de ocorrência. “Mas nunca fui até o final por medo”, diz.
A dona de casa, que descobriu recentemente que a filha de 10 anos foi abusada sexualmente pelo pai, conta que foi ameaçada e perseguida. “Quando percebi que a situação chegou nos meus filhos, vi que tinha que fazer alguma coisa.” Em relação ao relacionamento com Marcos, Eliana afirma que se sente segura. “Tive medo de me relacionar com qualquer pessoa pelo meu histórico, mas sei que ele sempre foi uma ótima pessoa.”
Para romper o ciclo de violência
Segundo números do Fórum Brasileiro da Segurança Pública, 536 mulheres foram vítimas de agressão física a cada hora no último ano e 4.936 foram assassinadas em 2017. Isso significa dizer que 13 mulheres morrem por dia no Brasil, o maior número em 10 anos. “Antes que a violência aconteça é preciso mudar paradigmas para quebrar o ciclo”, afirmou Célia Parnes, secretaria de Desenvolvimento Social de São Paulo. “As mulheres são abordadas incessantemente sobre o assunto e os homens, muito pouco.” Nas rodas de conversa, segundo ela, há uma reconstrução de vínculos. “Temos identificado que os homens agressores vem de algum processo de vitimização da infância, violência psicológica ou falta de apoio emocional.”
“Muitos relutam: quase sempre dizem que foi a mulher que provocou a violência e questionam porque elas não são igualmente punidas”
Patrícia Ramos Silva dos Santos, especialista em Direitos Humanos da UFABC
Nos estados em que existem os grupos de apoio, o juiz pode incluir na pena a participação obrigatória nos encontros. “Depende da gravidade do fato para saber se os encontros podem substituir ou complementar a pena”, explica Lídia Passos, subprocuradora geral do Ministério Público de São Paulo. Embora sejam considerados espaços relevantes para o debate de novas masculinidades, a especialista em Direitos Humanos da UFABC explica que os encontros sofrem com a descontinuidade. “Acompanha-se o homem, mas não os filhos”, diz Patrícia. “O projeto deveria se estender por outras portas além da Justiça”, diz. Segundo ela, muitas pessoas chegam aos grupos com problemas psicológicos, sem condições de absorver o debate.”
“A culpa era da filha”
O advogado Osvaldo Gomes da Silva, de 57 anos, participou dos encontros em 2017. Ele chegou ao grupo depois de ter sido condenado por ameaçar a ex-mulher. “Ela começou a envolver problemas da filha no relacionamento. Conforme eu ajudava a mãe, a filha começou a se sentir enciumada”, disse sem dar detalhes. “Cheguei ao grupo pensando que meu caso era muito mais simples do que os outros”, lembra. “Depois, pensei que enquanto estava lá, permanecia longe do problema”, diz.
Ele alega que a ex-mulher sofria de síndrome do pânico e teria tentado suicídio. “Hoje não estou mais nessa situação, sai de uma mentira.” Passados os encontros, Osvaldo diz ter pensado sobre alguns aspectos. “Se você não serve mais, é melhor se afastar. Você tem que entender que não existe mais o relacionamento”, diz. Por fim, afirma: “não me arrependo de ter me relacionado, o problema eram as filhas e o ex-marido.”
Do R7