O governo de São Paulo divulgou, entre 2011 e 2018, dados sobre violência contra a mulher inferiores aos reais. Após uma mudança de metodologia na contagem, implementada neste ano, os números, publicados no site da SSP (Secretaria da Segurança Pública), explodiram. Segundo o governo, antes, eram contabilizados apenas crimes que tinham características de violência doméstica.
A mudança fez subir nas estatísticas, em números absolutos, os homicídios dolosos (com intenção de
matar), os estupros e os estupros de vulneráveis. A SSP divulgou em seu portal de estatísticas, por exemplo, que foram registrados entre janeiro e julho deste ano 227 homicídios dolosos contra mulheres. Segundo o mesmo portal, no ano passado tinha sido 71 vítimas. Um acréscimo de 220%.
De acordo com o site, foram 327 estupros consumados em 2018 e 1.711 nos primeiros sete meses de
2019: aumento de 423%. E o número de estupros contra vulneráveis teria tido uma alta ainda maior. Passou de 299 para 4.716: 1.477%. Para a gestão Doria, no entanto, todos esses dados percentuais dos anos anteriores, que estão públicos para consulta, estariam errados.
A SSP afirma que “trabalha em um novo modelo de apresentação dos dados estatísticos de violência contra a mulher, ampliando as possibilidades de consulta pela população” e que os dados de 2019 já seguem essa nova metodologia, que, “de forma automática e dinâmica, possibilita verificar microdados diretamente dos boletins de ocorrência, o que não era possível na metodologia anterior”.
Segundo a secretaria, “de forma escalonada, os dados de anos anteriores serão convertidos para o novo modelo, permitindo, em breve, a comparação histórica”. A diretora-executiva do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), Samira Bueno, mostrou para o UOL a tabulação dos dados referentes a homicídios dolosos contra mulheres enviados pela SSP referente ao ano de 2018. Os números enviados, no entanto, não batem nem com os expostos no site da secretaria (71
vítimas) nem com os enviados à reportagem (282 vítimas). Segundo os dados enviados ao FBSP, foram 301 mulheres vítimas de assassinato entre janeiro e julho de 2018.
Uma prática que ocorreu desde 2011, quando uma lei estadual determinou a compilação e a publicidade dos dados de violência contra a mulher. A lei 14.545, de 14 de setembro de 2011, determina que o “Poder Executivo deve manter organizado um banco de dados destinado a dar publicidade aos índices de violência contra a mulher, a fim de instrumentalizar a formulação de políticas de segurança pública”.
A reportagem entrou em contato com as assessorias de imprensa dos ex-governadores Geraldo Alckmin (PSDB) e Márcio França (PSB) para comentar os dados. O ex-secretário da Segurança Mágino Alves Barbosa Filho, que atuou tanto com Alckmin quanto com França, afirmou à reportagem desconhecer a metodologia utilizada no governo atual, mas informou que as mesmas pessoas que trabalham na tabulação de dados atualmente também atuavam com ele.
“Obviamente, tem algum dado que está errado aí. A metodologia que era me apresentada continua os
dados fidedignos da violência em São Paulo. É preciso entender o que aconteceu de fato”, disse. Segundo ele, nunca houve determinação para ocultar, esconder ou diminuir nenhum dado durante sua gestão como secretário. E que todos os dados expostos pela pasta enquanto era secretário são fidedignos.
“Se for o caso, vamos corrigir os dados”
O secretário-executivo da PM (Polícia Militar), coronel Álvaro Camilo, afirmou que os dados da tabela apresentados no site não condizem com os da realidade, no entanto disse que não há erro. Segundo ele, houve uma questão metodológica e que em outro lugar do site seria possível encontrar os dados corretos.
Ainda de acordo com o coronel, os dados precisos são enviados anualmente ao FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
“Estamos separando, de acordo com a lei, tudo o que era da parte da mulher. Não teríamos interesse
nenhum de aumentar os dados. Nós apenas corrigimos a forma com que os dados foram colocados.
Vamos rever os dados do ano passado e não há problema nenhum em corrigir os dados. Se for o caso,
vamos corrigir os dados do ano passado. Vamos até estudar uma forma de apresentar isso melhor”,
afirmou. “A gente não estava aqui no passado, então não posso dizer que os dados estavam errados”,
complementou.
A major da PM Marta das Graças, que atua na parte da compilação de dados, disse acreditar que os
homicídios destacados na planilha do site da SSP tinham sempre ligação com violência doméstica. A
pasta, no entanto, nunca explicou qual metodologia era usada. “Acreditamos que a diferença metodológica é: estamos contando toda violência contra mulher, inclusive violência doméstica.
Segundo o ex-secretário Mágino Alves Barbosa Filho, a major atuava com ele. O ex-secretário afirmou que ela garantiu que nunca houve ocultação de dados, mas não soube precisar por que os dados de 2018, por exemplo, estão expostos com menos casos no site.
Dados estavam ocultos pela gestão Doria
Enquanto os dados de todos os indicadores criminais que estão em queda são divulgados pelo governador João Doria (PSDB), o número de homicídios contra as mulheres estava oculto até a tarde de terça-feira (3).
Na aba do site de estatísticas da SSP que deveria mostrar esses indicadores, não havia atualização desde dezembro do ano passado, ainda na gestão Márcio França (PSB).
Para Samira Bueno, diretora do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), “preocupa muito essa falta de transparência, em especial dos indicadores que têm crescido. A não atualização do site revela pouca transparência do governo”.
O coronel Álvaro Camilo afirmou que o FBSP tinha os mesmos números apresentados à reportagem sobre o assunto. “Não tem aumento de 200% no homicídio contra a mulher. A forma como esses dados foram colocados foi metodologicamente diferente”, argumentou.
Segundo a promotora Fabiana Paes, “toda administração pública deve prezar pela transparência e
publicidade dos dados. É um preceito importante. No meu entendimento, de forma genérica, para qualquer governo de estado, em qualquer esfera, a administração pública tem que se pautar pela transparência. É parte da democracia”.
“É importante manter as estatísticas atualizadas. Porque, se não temos como ver, não temos como saber o que fazer. Os dados são importantes para traçar política pública de combate à violência contra a mulher. Se você não tem o diagnóstico, não vai ter o remédio”, complementou a promotora.
Por meio de nota, a SSP informou que, “por um erro de processo interno, os dados de violência contra as mulheres —apurados, compilados e divulgados regularmente— ficaram indisponíveis para visualização no portal.
A SSP informou, também, que, nos primeiros sete meses do ano, todas as ocorrências de feminicídio
registradas foram esclarecidas.