O chocante caso do ‘serial killer’ confesso que nunca matou ninguém

By 25 de setembro de 2019Sem categoria

O sueco Sture Ragnar Bergwall — que adotou a alcunha de Thomas Quick — confessou ter cometido 39 assassinatos de homens, mulheres e crianças.

Os casos relatados por ele incluíam estupros, mutilações e até episódios de canibalismo.

E, ao longo da década de 1990 e 2000, foi condenado a dezenas de anos de prisão por oito destes crimes.

Mas, na verdade, ele era inocente — não havia matado ninguém. Todas as suas confissões eram falsas.

Sua imagem rodou o mundo — ele chegou a ser chamado de monstro pela imprensa internacional, que o comparava ao personagem Hannibal Lecter, o sádico serial killer do filme O Silêncio dos Inocentes.

A verdade só foi descoberta em 2013, graças ao minucioso trabalho de investigação do já falecido jornalista sueco Hannes Råstam, com a ajuda de sua assistente Jenny Küttim.

Depois disso, todas suas condenações por assassinato foram revistas e anuladas.

Prestes a completar 70 anos, Thomas Quick está em liberdade. Vive em um lugar sigiloso, fora da Suécia, e tenta recomeçar sua vida.

Neste mês, foi lançado na Suécia e na Noruega o filme Quick, dirigido pelo cineasta Mikael Håfström, que conta a história do que é considerado o maior erro jurídico da história da Suécia.

Mas por que Quick mentiu? Por que confessou crimes terríveis que não havia cometido?

A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com Jenny Küttim para tentar entender.

BBC News Mundo – Vamos começar do princípio. Quem era Thomas Quick? Que tipo de pessoa seria capaz de confessar mais de 30 assassinatos que não cometeu?

Jenny Küttim – Quick era um perdedor, foi a ovelha negra da família a vida toda. Usava drogas e foi alguém que mentiu a vida toda.

Entre outras coisas, ele era homossexual, mas, como cresceu em uma família profundamente cristã que rejeitava a homossexualidade, ele se reprimia, não aceitava ser gay. E começou a molestar crianças quando estava drogado ou bêbado.

BBC News Mundo – Em 1991, ele tentou roubar um banco vestido de Papai Noel, armado com uma faca, para conseguir dinheiro para comprar drogas. Ele foi detido e foi parar na cadeia, é verdade?

Küttim – Sim. Quick cometeu esse roubo e, por causa de seu depoimento, seu melhor amigo acabou na prisão. Então todos seus outros amigos deram as costas para ele. E ele se sentiu muito sozinho.

BBC News Mundo – Pouco depois de ser preso, ele pediu para ser internado, por vontade própria, na clínica psiquiátrica de segurança máxima de Säter, a cerca de 200 quilômetros de Estocolmo. Por quê?

Küttim – Quick tinha 40 anos quando deu entrada na prisão psiquiátrica. Ele queria entender a si mesmo e a homossexualidade.

BBC News Mundo – Como era a clínica de Säter? Que tipo de tratamento ele recebeu lá?

Küttim – Quando Quick chegou a Säter nos anos 1990, havia um grupo de psiquiatras e psicoterapeutas liderados por Margit Norell, uma psicanalista célebre na Suécia.

Norell queria entender como funcionava a mente de um criminoso e, para isso, usou uma terapia baseada nos primeiros ensinamentos de Sigmund Freud, segundo os quais mulheres com histeria reprimiam memórias e, portanto, desenvolviam essa doença nervosa.

Então eles tentaram tirar essas memórias de Quick. Mas Quick não tinha nenhuma história incrível para contar.

BBC News Mundo – Quick começou a mentir para agradar psiquiatras e psicoterapeutas?

Küttim – Quick queria continuar fazendo terapia, queria entender a si mesmo. E, além disso, na prisão psiquiátrica, davam drogas a ele, davam benzodiazepínicos (medicamentos psicotrópicos que são frequentemente receitados a viciados em drogas para ajudá-los a se acalmar).

E Quick era um viciado, queria drogas. Então ele começou a mentir para chamar a atenção dos psiquiatras.

Era fácil para ele, estava acostumado a mentir, tinha feito isso a vida toda. E começou a confessar crimes.

Ele sempre foi um leitor voraz, lia sempre os jornais. Por isso, conhecia os principais casos de assassinato que abalaram a Suécia e que não haviam sido resolvidos, e alegou ser responsável por esses crimes.

BBC News Mundo – Como os psiquiatras de Säter reagiram diante das confissões de Quick?

Küttim – Os terapeutas ficaram bastante entusiasmados com o fato de Quick ter confessado os crimes, crimes de que ele “não se lembrava” até chegar à clínica.

Para ajudá-lo a “lembrar”, davam a ele livros sobre serial killers, como Psicopata Americano, artigos de jornal… Além disso, nos primeiros anos, Quick teve permissão para deixar Säter e ir até as bibliotecas públicas de Estocolmo, onde lia nos jornais notícias sobre assassinatos.

BBC News Mundo – E suponho que os terapeutas de Säter tenham comunicado as confissões de Quick à polícia…

Küttim – Quick nunca pensou que seria julgado, muito menos condenado pelos assassinatos que confessara para chamar a atenção dos terapeutas.

Mas os psicoterapeutas estavam convencidos de que as confissões dele eram verídicas, que as coisas poderiam realmente ter ocorrido como Thomas Quick disse que aconteceram. Então convenceram a polícia que investigava os casos a acreditar em suas memórias reprimidas.

Todos ficaram fascinados com Quick: os psiquiatras, a polícia… Acreditaram nele e realizaram buscas por toda a Suécia pelos corpos das pessoas que Quick disse ter matado.

Quando Quick falava que havia enterrado os restos mortais de uma de suas vítimas aqui ou ali, a polícia ia às pressas para o local investigar.

Quick tinha um poder enorme, qualquer coisa que ele dissesse mobilizava a polícia e os psiquiatras.

BBC News Mundo – Seis tribunais suecos distintos condenaram Quick por oito assassinatos. No entanto, nunca encontraram nenhum corpo, tampouco conseguiram achar evidências materiais contra ele, é verdade?

Küttim – Se for olhar para as provas, realmente não havia nada contra Quick. Os veredictos contra ele foram baseados em suas próprias confissões e supostas memórias reprimidas.

Apenas no julgamento pelo assassinato de Therese Johannesen (uma menina de 9 anos morta em 1988 em Drammen, na Noruega) havia evidências que iam além da confissão de Quick: a polícia encontrou um pedaço de osso que, segundo um especialista, pertenceria a uma criança com menos de 14 anos.

Essa prova se encaixava perfeitamente na história que Quick havia contado sobre o assassinato.

BBC News Mundo – Quando Hannes Råstam e você começaram a investigar o caso Thomas Quick?

Küttim – Em 2007, 2008. Eu tinha 24 anos. Já havíamos feito um documentário sobre Thomas Quick e quatro assassinatos que ele confessara.

Depois de fazer esse documentário, nos perguntamos quantas pessoas poderiam estar na prisão por terem confessado crimes que, na verdade, não haviam cometido.

E uma dessas pessoas era Thomas Quick. A Suécia estava dividida: havia uma parte da sociedade que estava satisfeita em saber que ele era o culpado por essas mortes. Mas também havia pessoas que não acreditavam que ele tivesse cometido os crimes que confessara.

Decidimos então estudar todo o material sobre ele para tentar entender o que realmente havia acontecido e por que havia pessoas que estavam absolutamente convencidas da sua culpa. E foi assim que tudo começou.

Küttim – Revisamos tudo, tudo, inclusive o histórico médico completo dele que, de acordo com a investigação policial, deixava absolutamente clara sua culpa. Mas obviamente não era bem assim.

BBC News Mundo – Como era Hannes Råstam como jornalista?

Küttim – Ele era um jornalista obsessivo com detalhes, e o segredo quase sempre está nos detalhes. Ele era um grande jornalista investigativo, um jornalista de raça.

Quando via algo que não se encaixava, não parava até entender o que estava acontecendo. E ele também era alguém que acreditava nas pessoas, que acreditava em segunda chance.

E, no caso de Thomas Quick, ele percebeu que poderia ser uma vítima. Mas, acima de tudo, se empenhou em entender o que estava acontecendo.

O caso de Thomas Quick foi o auge do seu trabalho, mas foi fruto de todas as investigações jornalísticas que havia feito antes.

BBC News Mundo – Quick colaborou com vocês?

Küttim – Sim. Depois de seis meses trabalhando com ele, Quick retirou as confissões. Um dia, nos disse: ‘O que posso fazer se não cometi esses assassinatos? Ser preso?’

E Hannes Råstam falou: ‘Agora você tem sua grande oportunidade: me dizer a verdade’.

Tudo o que sabíamos era que Quick era um mentiroso, um grande mentiroso, um mentiroso magistral. Mas quando retirou suas confissões, nos convencemos de que ele não estava mentindo.

BBC News Mundo – Mas ainda havia aquele pedaço de osso que, segundo um especialista, pertencia a uma criança com menos de 14 anos e foi encontrado no lago onde Quick alegou ter jogado o corpo da menina Therese Johannesen…

Küttim – Sim. Esse osso era uma prova contundente contra Quick e por vários meses nos confundiu bastante. Mas em 2010, foi revelado que esse suposto osso era, na verdade, um pedaço de plástico.

BBC News Mundo – A partir daí, todas as sentenças contra Quick foram revisadas e caíram uma após a outra… Como é possível que tantos erros tenham sido cometidos pelos terapeutas, pela polícia e pelos tribunais?

Küttim – Os terapeutas que cuidaram de Quick, os policiais responsáveis pela investigação, eram como uma seita, como um culto.

Se alguém manifestasse algum tipo de objeção, era excluído do grupo. Houve, por exemplo, agentes que questionaram como era possível que Quick tivesse usado 13 maneiras diferentes de matar, algo incomum para um serial killer, e foram afastados da investigação.

E não para por aí: eles ocultaram todas as evidências que colocavam em xeque que Quick era o verdadeiro autor desses assassinatos, e não apresentaram aos tribunais com o argumento de que (as provas) poderiam confundi-los, que poderiam fazer com que não enxergassem Thomas Quick como o serial killer que tinham certeza que ele era.

Eles estavam convencidos de que ele era um serial killer, haviam decidido, e não queriam que nada estragasse isso.

Além disso, acredito que, em grande parte, o que aconteceu foi resultado do momento em vivíamos. No início dos anos 1990, estávamos muito chocados com o personagem Hannibal Lecter em O Silêncio dos Inocentes e, quando o caso de Quick veio à tona, muita gente se precipitou a compará-lo a ele, houve uma grande pressão da imprensa.

A psicoterapia também vivia um grande momento, então tudo isso se juntou. E vale acrescentar que a imprensa não fez seu trabalho: confiou que a investigação policial estava correta, ficou satisfeita por haver um serial killer.

Eles poderiam ter feito facilmente seu trabalho, ter feito jornalismo e revisado todo o material de Thomas Quick.

Mas não fizeram, não estavam interessados nele, estavam mais interessados na morbidez de haver um terrível serial killer. E Quick, por outro lado, era o paciente perfeito, o assassino perfeito. Todos esses mecanismos se juntaram.

BBC News Mundo – Alguém foi condenado por toda a sequência de erros cometidos no caso Thomas Quick, algum terapeuta, alguém da polícia?

Küttim – Não. Nenhum terapeuta, nenhuma policial, ninguém foi levado a julgamento no caso Thomas Quick, tampouco recebeu qualquer tipo de punição pela maneira como atuou.

Uma comissão investigou o que aconteceu, mas concluiu que nenhuma pessoa específica era responsável pelo ocorrido.

Da BBC

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