A maternidade, a sociedade patriarcal e o desafio de ser mãe dentro de uma cadeia

By 27 de setembro de 2019Lute como uma garota


O que é ser mãe? Em uma sociedade patriarcal e machista como a nossa, essa pergunta é respondida rapidamente. Ser mãe é uma experiência única, de plenitude e felicidade. É um coração capaz de amar infinitamente e sentir por dois, sorrir por dois, sofrer por dois. É dar o melhor de si duas vezes. É sentir por seu filho um amor incondicional e eterno.
Na experiência prática, porém, a maternidade é vivida, pela maioria das mulheres, de forma solitária e excludente.

O ideal materno de perfeição e santidade não corresponde à realidade vivida pelas mulheres. A forma que cada uma vive a maternidade depende não apenas da mãe, em sua individualidade, mas do contexto em que essa experiência é vivenciada. Há muitas formas de ser mãe e é necessário pensar sobre o valor político, social e econômico dado a maternidade dentro de uma sociedade capitalista que aprisiona as mulheres em diversos estereótipos e julgamentos.

E quando a mãe é uma “criminosa”? O corpo da mulher, sempre disciplinado e destinado a ocupar os espaços domésticos, ao cometer uma infração penal, indo contra a disciplina e normatizações submetidas ao corpo feminino, é triplamente criminalizado. Ao cometer um crime uma mulher não é apenas uma criminosa, ela é uma mulher e mãe criminosa. Todos esse estigmas contribuem para que gestantes em situação prisional encontrem-se em situação de extrema vulnerabilidade.

O ambiente carcerário causa prejuízo a gravidez devido a violência cotidiana enfrentada e à negação de necessidades básicas como sono, alimentação saudável, segurança e relacionamentos sociais. A gravidez no cárcere não recebe os devidos cuidados. São poucas as instituições prisionais que prestam assistência adequada às mulheres grávidas e que, após o parto, podem disponibilizar um lugar adequado para a mãe ficar com a criança durante o período assegurado por lei.

Segundo os dados do Infopen 2018, 74% das mulheres privadas de liberdade têm filhos, enquanto 53% dos homens, que se encontram no sistema prisional, declaram não ter filhos. Se refletirmos sobre esses números, percebemos que a entrada da mulher no sistema prisional não interfere apenas na própria vida dessas mães, mas também de toda a sua família que, na maioria das vezes, depende dessas mulheres para manutenção financeira dos seus lares e organização da vida cotidiana dos seus filhos(as).

De acordo com esses dados, cerca de 2.000 crianças estão detidas com suas mães, sendo que apenas 120 possuem acesso ao berçário.

A recorrência da maternidade nos presídios fere não só princípios e dispositivos de ordem constitucional e penal, mas também viola o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), considerando que a estrutura deficitária das prisões brasileiras não consegue garantir a efetividade da proteção integral ou da convivência familiar e comunitária.

É importante ressaltar que, ao engravidar, a mulher passa por mudanças significativas tanto físicas quanto emocionais. Sem a devida estrutura para atender suas necessidades, cercada de pessoas estranhas e sem o apoio da família, as gestantes se cercam de sentimentos negativos que dificultam ainda mais o enfrentamento desse período. Superar a ausência dos seus outros filhos, os medos e dúvidas sobre o momento do parto, sua saúde e de seu bebê são apenas alguns dos desafios vivenciados por essas mulheres.

O coletivo Liberta Elas realiza uma oficina específica com grávidas e lactantes na Colônia Penal Feminina do Bom Pastor, localizada em Recife-PE. As oficinas, chamadas de Rodas de Escuta, são pensadas e realizadas pela psicóloga do grupo, Fernanda Trevas, e tem como objetivo acolher essas mulheres por meio de uma escuta ativa, conversas sobre maternidade, afetos e cuidados. As Rodas de Escuta são realizadas no berçário do presídio, um local pequeno e solitário, que se encontra afastado dos outros espaços da instituição. É chocante entrar na prisão e perceber, logo em seguida, um outro espaço de isolamento. A sensação de ser mais uma vez aprisionada é brutal. A batida de mais uma porta, de mais uma tranca, é um sentimento jamais esquecido.

Durante as oficinas, são formados grupos com quinze mulheres em média, entre elas, grávidas, lactantes e os seus bebês. Grande parte das participantes tem em média de dois a três filhos(as) fora da prisão. Em todas as oficinas escutar com carinho, atenção, compreensão e afeto é o principal objetivo. Nessa avalanche de palavras ditas, a dor, a saudade e a culpa são sentimentos sempre presentes. A vergonha por estar grávida na prisão e por não se considerarem (nem serem consideradas) “boas” mães e mulheres são questões recorrentes que trazem grande sofrimento a essas mulheres.

Como sobreviver a um ambiente extremamente desumanizador quando o que mais é exigido durante uma gravidez é a humanidade, o nascimento de um ser?

Do lado de fora da prisão, a maternidade também não é fácil, sendo tema de vários debates, poucos esclarecimentos e muitos julgamentos. É vivido algo tão belo, como gerar uma criança, e, ao mesmo tempo, tão assustador como criá-la, mantê-la viva, saudável e feliz. Nenhuma gravidez é igual, mas é difícil imaginar alguma gestação que não venha acompanhada de sentimentos de dúvida, medo e solidão. Tudo aquilo que comemos e fazemos com o nosso corpo, durante a gravidez, passa por um crivo ainda mais rígido da sociedade. A gestação, o bebê em crescimento no ventre e o estilo de vida da mãe é vigiado e julgado por uma tabela do que é certo ou errado. Quando essa mãe é uma “criminosa”, tem outros filhos e está grávida dentro do cárcere esse julgamento toma proporções muito maiores. Que mãe é essa que está expondo o seu filho aos piores dos mundos?

Em uma das Rodas de Escuta, conhecemos uma mulher que tinha acabado de ser presa. No momento da prisão, ela estava em casa, grávida de nove meses, com seus dois filhos, quando foi violentamente abordada pela polícia e presa por desacato. A jovem mulher relatou a agressividade da polícia na abordagem e a humilhação que passou na delegacia, chegando a urinar no chão. Dias depois, ela teve o seu bebê. Foi ao hospital e retornou ao cárcere com a criança nos braços, enquanto seus outros dois filhos aguardavam o seu retorno na casa de parentes.

Denúncias como essa de violações de direitos e humilhação são recorrentes nas oficinas de escuta e, apesar disso, impressiona a resistência dessas mulheres que ainda têm sonhos e esperanças de um futuro diferente. Alguns meses depois, ainda no presídio, a mesma mulher que foi presa aos nove meses de gestação fala: “Na próximaoficina não estarei mais aqui”. Respondemos que nos encontraremos lá fora, em outros espaços. Então ela diz: “Quem sabe, eu viro uma integrante do Liberta Elas!”. Ela sabe que a luta tem que continuar e se projeta voltando, mas, dessa vez, na condição de uma mulher livre.

Relatos como esse nos fortalecem e dão força para continuar a luta mesmo em um ambiente de tanta injustiça. Não podemos deixar que essas mulheres sejam esquecidas. Não esqueceremos!

Da Carta Capital

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