A fila para entrar na Penitenciária Feminina de Sant’Ana, na capital paulista, foi interrompida quando Tatiana* passou pelo scanner corporal naquele domingo. A varredura era praxe a que ela estava
acostumada quando ia visitar a mãe, que cumpria pena na unidade, levando junto a filha, então com dois anos. Só que dessa vez uma agente informou que havia algo em seu útero.
Mãe e criança foram levadas a uma sala, e a diretoria do presídio acionou uma viatura da Polícia Militar. A partir daí, Tatiana conta que passou a ser ameaçada e coagida por quatro policiais —três deles, homens. Eles pediam para ela “entregar o BO”. Caso contrário, seria presa em flagrante e
chamariam o Conselho Tutelar para levar sua filha. O caso aconteceu no dia 4 de março de 2018 e foram usados nomes fictícios para proteger a identidade das vítimas.
As duas acabaram conduzidas ao Hospital do Mandaqui, próximo da penitenciária. Lá, Tatiana foi forçada a realizar exames médicos invasivos — se não se submetesse aos procedimentos, disseram os policiais, seria presa.
Fizeram um exame de toque e uma coleta de sangue. Ambos deram negativo, descartando a presença de objetos em seu útero e seu canal vaginal. Ainda assim, a mulher passou por outros procedimentos: tomografia, ultrassom, radiografia.
Enquanto se sucediam os testes, ela conta, as agressões verbais continuaram, mesmo depois de ela informar que poderia estar grávida.
Tatiana e a filha ficaram no Mandaqui durante oito horas, das 12h às 20h. Nesse período, elas não puderam se alimentar nem ir ao banheiro, o que só foi autorizado pouco antes de irem embora, sob condição de que a porta ficasse aberta e não apertassem a descarga, pois os agentes iriam verificar se
havia algum objeto no sanitário.
Obviamente Tatiana não conseguiu visitar sua mãe naquele dia. Ao retornarem ao presídio, não recuperaram os pertences, que haviam sido guardados durante outro turno. Mãe e filha só voltaram para casa após uma servidora da unidade oferecer a elas dinheiro para pagar o transporte coletivo.
A mãe de Tatiana foi transferida, 22 dias depois do caso, para a Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu —167 km mais distante de onde a família vive, num bairro periférico de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo.
Em nome das duas, a Defensoria Pública do Estado entrou na Justiça com uma ação de indenização por danos morais e materiais, alegando que elas tiveram violados os direitos à intimidade e à privacidade. Também sustenta que Tatiana foi mantida em “cárcere privado e estuprada pelo
Estado”.
Uma lei editada em 2014 pelo Legislativo paulista mudou as regras para a revista de visitantes nos presídios, na tentativa de evitar inspeções vexatórias. Segundo o texto, todos devem ser submetidos à revista mecânica, em local reservado, por meio de equipamentos como o scanner corporal, detectores de metais e aparelhos de raio-x.
Na hipótese de o agente identificar uma “suspeita justificada de que o visitante esteja portando objeto ou substância ilícitos”, as providências devem ser: submetê-lo novamente à revista mecânica, com outro equipamento; caso persista a suspeita, impedi-lo de entrar no estabelecimento prisional; caso insista na visita, deve ser encaminhado a um ambulatório onde um médico poderá averiguar a suspeita.
Ou seja, o máximo que pode ocorrer é o visitante ser impedido de ingressar na unidade prisional.
Nesse caso, para os defensores, não havia suspeita justificada. Eles apontam que os equipamentos de scanner têm sido operados por agentes penitenciários.
A prática contraria regras que determinam que, para operar equipamentos emissores de radiação ionizante, é preciso ser técnico ou tecnólogo em radiologia legalmente habilitado pelo Conselho Regional de Técnicos em Radiologia de São Paulo.
O conselho cita riscos graves em lidar com equipamentos do tipo. Por isso, técnicos em radiologia trabalham em regime de 24 horas semanais e recebem adicional de risco de vida e insalubridade. São também treinados para analisar as imagens obtidas pelo scanner e para reduzir o tempo da exposição.
A situação se agrava nos casos de pessoas com marca-passo e de gestantes e lactantes, que não poderiam ser expostos à inspeção. Ao perceber isso, integrantes da facção criminosa PCC passaram a
recrutar mulheres com prótese ou órtese (como pinos no corpo) e grávidas para entregar celulares aos detentos. Não era, porém, o caso de Tatiana.
“Mesmo após a instalação dos scanners corporais, a lógica de desumanização [nas visitas] não foi alterada, ela só tem criado novos mecanismos de punição aos familiares de pessoas privadas de liberdade”, afirmam os três defensores do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria
que assinam o documento pedindo a indenização, Leonardo Biagioni, Mateus Moro e Thiago Cury.
Em 2 de agosto deste ano veio a sentença. A juíza Alexandra Fuchs de Araujo considerou que houve comportamento abusivo por parte dos agentes públicos. Ela conclui que eles não agiram de acordo com a lei ao forçar Tatiana a realizar exames invasivos para não ser presa, submetê-la a raio x mesmo com suspeita de gravidez e privar a criança e a mãe de alimentação e de ir ao banheiro.
A magistrada classificou o episódio como “um dia de tortura”, porque Tatiana “se recusou a confessar a prática de um ilícito que de fato não tinha praticado”. Ainda segundo a sentença, “houve efetivo abalo à paz, à tranquilidade, à intimidade e à dignidade” das duas.
A juíza determinou que o Estado de São Paulo, sob gestão de João Doria (PSDB), pague indenização de R$ 50 mil para Tatiana e de outros R$ 50 mil para sua filha, além de arcar com custas e honorários do processo.
A Procuradoria-Geral do Estado recorreu da decisão.
Final feliz para uma história triste. Por enquanto.
da