Aos 13 anos, Marie McCreadie perdeu a capacidade de emitir sons. Ela foi discriminada e internada num hospital psiquiátrico, até que a misteriosa causa de sua mudez foi descoberta.
Agora imagine que isso aconteça por mais de uma década. Você perde sua forma mais básica de comunicação e nem sequer pode conversar com seus amigos. Até que, um dia, inesperadamente, você recupera a fala.
Essa é a história de Marie McCreadie.
Do Reino Unido à Austrália
Voltemos ao tempo até o início da década de 1970.
Marie nasceu no Reino Unido, mas se mudou com a família para a Austrália quando tinha 12 anos. Naquelá época, ainda conseguia falar.
“Aterrissamos em fevereiro. Deixamos para trás uma Londres gelada e chegamos na metade do verão australiano (…). Era como férias de verão”, ela recorda.
Mas todo verão tem um fim. Justo quando Marie começava a se adaptar à vida nova, imitando inclusive o sotaque australiano com sucesso, algo terrível aconteceu.
De repente, sem voz
“Acordei com uma forte dor de garganta e um grande resfriado”, Marie conta à BBC. “Um ou dois dias depois, tive bronquite.”
“Na primeira semana, a irritação (da garganta) era muito intensa por causa da febre.”
“Mas quando a temperatura baixou, a infecção desapareceu e comecei a me sentir melhor e ‘normal’… mas, depois de umas seis semanas, minha voz não voltou.”
Marie não sabia o que havia acontecido, mas pensava que poderia voltar a falar a qualquer momento.
Pouco a pouco, deu-se conta de que isso não aconteceria – pelo menos por muitos anos.
E ela não só não conseguia falar.
Ela não conseguia emitir qualquer tipo de som com as cordas vocais. Nem uma voz rouca, nem uma tosse.
Marie foi ao médico, mas os diagnósticos foram confusos e errados.
“A princípio diagnosticaram uma laringite e depois disseram que se tratava de mudez histérica”, conta.
A expressão mudez histérica foi usada pela primeira vez no século 19. É descrita como um transtorno da função vocal sem que haja mudanças no corpo, que resultaria num silêncio voluntário.
Em outras palavras, o médico achava que ela se negava a falar.
Mas Marie não concordava com o diagnóstico.
De qualquer forma, ela estava ocupada demais tentando lidar com o mundo como uma adolescente sem voz, o que lhe trouxe várias dificuldades óbvias, mas também algumas inesperadas.
“O telefone, por exemplo. Não podia marcar um corte de cabelo ou uma consulta médica. E se estava em apuros ou sofria um acidente tampouco podia gritar.”
Ela lembra que, certo dia, sentiu medo quando caminhava com amigos pela montanha e não pode pedir ajuda ao ficar atolada.
“Me dei conta de que tinha de ser mais cuidadosa”, afirma.
“A filha do diabo”
Outro episódio traumático ocorreu quando a professora a obrigou participar do coral do colégio – todos na classe deveriam fazê-lo – e Marie teve de deixar o recinto.
Ela diz que muitos na escola não entendiam sua mudez.
“No princípio, todos pensaram que era muito divertido. Mas você se cansa disso muito rapidamente quando se trata de sua vida cotidiana.”
“Eu sempre levava pequenos cadernos de notas e um lápis, e me punha a escrever. Alguns de meus amigos podiam ler meus lábios – porque estávamos sempre juntos -, mas não sempre. Às vezes, não podia participar de conversas.”
Ela também usava as mãos e fazia sinais para se expressar, “mas na maioria das vezes tinha de escrever o que queria dizer.”
Ela diz que não tinha ajuda no colégio, pelo contrário.
“Eu ia a um colégio católico e uma freira, ao saber que não havia uma razão física que me impedisse de falar, disse que Deus estava me castigando e havia me deixado sem voz.”
“(Meus colegas) começaram a acreditar no que diziam, que eu estava sendo castigada e tinha de confessar meus pecados para recuperar minha voz. Eu me negava porque não tinha nada a confessar.”
Marie diz que começou a questionar a si mesma. “No mundo em que crescemos, o padre, as freiras, os médicos tinham sempre razão. Não eram postos em dúvida.”
“As meninas costumavam me chamar de mulher do diabo e outras piadas desse tipo, mas com o tempo deixou de ser uma piada. Era grave, extremo.”
“Como me neguei a confessar pecados, não me deixavam entrar na igreja e ir para a missa que frequentávamos todas as sextas, então tinha de ficar do lado de fora.”
“Nesse momento, comecei a acreditar neles e a pensar que era diabólica, que pertencia ao diabo, que Cristo não queria olhar para mim, que não era parte da cristandade, que era uma bruxa.”
Fora da escola, vizinhos diziam que ela havia enlouquecido, e um amigo de sua mãe sugeriu que ela fosse abandonada “porque não se sabe o que pessoas como ela podem fazer”.
No hospital psiquiátrico
Dois anos depois de ter perdido a voz, Marie se sentia isolada, frustrada e cheia de dúvidas.
As coisas se complicaram tanto que ela tentou se matar aos 14 anos. Acabou em um hospital e, quando se recuperou, foi transferida para um hospital psiquiátrico.
“Isso foi um inferno, um pesadelo. Havia drogados, pessoas com crises nervosas, uma mulher que imagino ter sofrido abusos… Eu era a mais jovem e era muito influenciável.”
Marie superou todos os traumas, mas se lembra vividamente das duras experiências que enfrentou
Também se lembra da falta de intimidade e das terapias com choques elétricos. Ela escutava os pacientes gritando e chegou a fazer uma sessão. “Era como uma câmera de tortura. Muito cruel.”
Marie fugiu e foi à casa de um amigo. Ela pode voltar a sua casa, mas a relação com os pais estava danificada. Tinha medo de todo mundo ao redor, “não queria ver ninguém, a pouca confiança que tinha nas pessoas desapareceu no hospital psiquiátrico”, lembra.
Ela então se isolou por seis meses. Marie não acreditava que voltaria a recuperar a voz e começou, pouco a pouco, a reconstruir sua vida.
Ela passou a trabalhar no café administrado por sua mãe e aprendeu a língua de sinais. Voltou a estudar e aprendeu mecanografia.
Não é que os problemas dela tivessem se resolvido, mas pelo menos ela era agora uma adulta com uma vida relativamente normal.
Até que um dia, quando tinha 25 anos, estava no trabalho e começou a se sentir muito mal.
“Comecei a tossir e começou a sair sangue da minha boca. Pensei que estava morrendo. Podia sentir algo se movendo no fundo da minha garganta. Em certo momento pensei que estava tossindo minhas entranhas. Hoje parece uma idiotice, mas naquele momento sua cabeça dá voltas.”
Um colega chamou uma ambulância, e Marie foi levada ao hospital.
Os médicos viram que ela tinha um objeto na garganta e conseguiram extraí-lo. Estava coberto de muco e sangue, mas, quando o limparam, descobriram que se tratava de uma moeda.
Ela estava desde os anos 1960 com aquela moeda presa na garganta – e diz não ter ideia de como o item foi parar lá.
Aquela pequena moeda havia ficado presa no fundo de sua garganta por 12 anos, justo ao lado de suas cordas vocais, impedindo que elas vibrassem e emitissem sons.
Mas, assim que a moeda saiu, Marie recuperou a voz.
“Pude sentir o som na minha garganta, gemidos, soluços. No início, não sabia de onde vinha esse ruído.”
“Fiquei em choque.”
Como não haviam visto aquela moeda na garganta? Os médicos disseram que a posição do objeto havia o tornado indetectável.
Marie teve de reaprender a respirar e a moderar o tom da voz, mas diz que não levou muito tempo.
Sua primeira ligação telefônica foi para a mãe, que começou a chorar. Depois participou do coral local para fazer as pazes com o passado.
Em seu livro “Voiceless” (sem voz), publicado em julho de 2019, ela conta a história.
Quanto à moeda, ainda a guarda numa pulseira que veste de vez em quando.
Do Terra/BBC