Foi no enterro da filha Marcella que os seios da professora Flávia Cunha, 40, de Campinas (SP), começaram a jorrar leite. A menina havia sofrido falta de oxigenação no cérebro e morrido 24 horas após nascer.
No dia seguinte, com os mamas cheias e doloridas, Flávia foi até a maternidade para aprender a ordenhar o leite. Queria doá-lo a outros bebês.
“Por que ordenhar? Você não pode doar, o seu bebê morreu”, ela conta que ouviu da enfermeira. “Mas por que não posso? Sou saudável, não tenho nenhuma doença”, questionou. “Porque isso vai atrapalhar o processo de luto”, respondeu a profissional.
Flávia voltou para casa e durante quatro meses produziu leite, mesmo tendo tomado dois remédios para secá-lo. “Tirava o leite com as mãos, no banho, na pia. Era horrível ver aquele leite todo escorrendo pelo ralo. Foi como viver um segundo luto. O luto do leite”, diz.
Hoje mãe de Manuela, 3, Flávia diz que, por razões emocionais, não conseguiu amamentar a segunda filha. “Foi muito difícil, sofri um estresse pós-traumático. O cheiro do leite era um gatilho para reviver todo o luto anterior.”
O drama de Flávia não é único. Mulheres que perderam seus bebês na fase final da gestação ou após o nascimento e que querem doar o leite são impedidas de fazê-lo nos bancos de leite brasileiros.
As instituições dizem se apoiar em norma da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de 2006 que coloca como um dos critérios para a mãe poder fazer a doação “estar amamentando ou ordenhando leite humano para o próprio filho”.
Segundo Danielle Aparecida da Silva, coordenadora do centro de referência da Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano, a norma da Anvisa é clara em relação à restrição.
Ela afirma que existem razões psicológicas e fisiológicas que contraindicariam essa doação pela mãe que perdeu o bebê. “Pode prolongar o luto.”
Como não está dando o peito nem esvaziando a mama cheia de leite, essa mulher ficaria também mais suscetível a inflamações no seio como a mastite, que também afeta mães que amamentam, causando desconforto e dor. Se não tratadas, podem se transformar em infecção.
“A mulher [que perdeu o bebê] pode ir até um banco de leite e fazer uma ordenha de alívio. Lá será orientada pelos profissionais de saúde, inclusive por psicólogos, que não deve continuar estimulando [a lactação] para que não tenha esse desgaste”, explica.
Em nota, a Anvisa diz que não há proibição expressa para a doação de leite materno por mulheres que perderam seus filhos, desde que atendam aos demais critérios -ser saudável, não fumar, não beber, não usar drogas.
“A necessidade de ‘estar amamentando ou ordenhando LH [leite humano] para o próprio filho’ só se aplica às mulheres cujos filhos estejam vivos”, diz a nota.
Segundo a agência, “a norma não previu a excepcionalidade de doações de mães que se encontram em luto”.
Protocolos internacionais sobre perdas gestacionais ou morte de bebês, como o do sistema de saúde do Reino Unido, dão a opção para a mãe enlutada de fazer a doação do leite, caso seja a sua vontade, ou iniciar a supressão orientada por profissionais de saúde.
Segundo a psicóloga Heloísa Salgado, pesquisadora na área de luto perinatal, não há razões técnicas descritas na literatura mundial que impeçam a doação de leite por mães enlutadas.
“Não podemos fazer normas que restrinjam a escolha da mulher. Elas precisam acolher as várias opções. Ela pode doar o leite, suprimir com medicação, tentar diminuir a produção enfaixando [os seios] ou simplesmente aguardar”, afirma Heloísa, co-autora do livro “Como lidar com o luto perinatal”.
Segundo a psicóloga, a questão vem sendo debatida em maternidades que estão adotando novos protocolos de acolhimento das famílias em casos de perdas de bebês.
“Não atrapalha o luto. Muitas mães relatam que gostariam de ter tido essa opção, mas elas já saem da maternidade com a medicação para suprimir o leite. As poucas que conseguem chegar aos bancos de leite têm negado esse desejo.”
A nutricionista Marina Cardoso de Oliveira, 37, de Ribeirão Preto (SP), passou por isso em 2017. O filho Guilherme nasceu com uma grave síndrome genética e morreu 17 dias após o nascimento. Durante esse período, ela retirava o leite com uma maquininha e dava ao bebê por meio de uma sonda na UTI neonatal.
Do Yahoo Notícias