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Imaginem a situação:
Você tem um companheiro, filhos pequenos e sofre todo tipo de violência doméstica. Tira coragem de algum lugar. Vai à delegacia e presta queixa, consegue uma medida protetiva. Sai de casa com seus filhos, o divórcio finalmente sai, e você tem que lidar com o fato que esse ex violento, pai dos seus filhos, vai continuar em contato permanente com eles.
Especialistas explicam: se não há agressão contra o filho, ele não pode ser privado da convivência com o pai, mesmo que a mãe tenha a medida protetiva.
Natural de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, Lorena engravidou do então namorado aos 16 anos. Expulsa de casa pela mãe, casou com o pai da criança e se mudou para Araraquara, 90 quilômetros distante da família. Ela conta que o marido, um mecânico, era ciumento, controlava suas saídas de casa e até as mensagens que trocava com a mãe. A primeira agressão física aconteceu após dez anos de casamento. Ela conseguiu seu primeiro emprego como operadora de máquinas numa fábrica de roupas, e o homem usou isso como desculpa.
“Ele dizia que eu tinha caso com meio mundo. Até minha depilação dava problema. Mas acabei descobrindo que, enquanto eu ia trabalhar à noite, ele deixava nossos dois filhos pequenos dormindo e saía para se encontrar com outras mulheres. Pedi o divórcio e ele falou que me daria um tiro na cabeça e sumiria com meus filhos. Depois, me trancou no nosso quarto, montou em mim e me deu muitos socos na cabeça e nos braços. Meus filhos ouviram tudo da sala. Quando ele parou, disse: ‘Isso foi pra você entender que tem uma família e que não pode largar tudo assim’.”
Mesmo com muito medo e sentindo dores, Lorena foi à delegacia da mulher fazer um boletim de ocorrência. No caminho, recebeu mensagens do agressor em que ele dizia: “Estou disposto a colocar uma pedra bem grande em cima disso tudo”. E ainda: “Amanhã te prometo que vou chegar como se nada tivesse acontecido. Eu te amo”. A promessa não foi cumprida e Lorena seguiu apanhando por mais dois anos. O homem controlava suas economias e ela não tinha para onde ir com as crianças.
Um dia, após ser enforcada pelo marido e ficar desacordada, Lorena ligou para a mãe e, com a ajuda dela, alugou um quarto com banheiro e teto de zinco, sem laje, em Ribeirão Preto. Antes de levar tudo embora, procurou novamente a polícia. “Fui à delegacia da mulher, com ajuda do meu vizinho, mas ela estava fechada. Tinha só uma mulher dando informação, e ela me disse pra ir até a delegacia de plantão. Fiz isso, mas não tinha quem fizesse meu boletim porque estavam todos na rua. Então desisti.”
Uma semana após a mudança, o ex foi ao seu encontro pegar as crianças para passar o fim de semana em sua casa. Ele já estaria com outra companheira e, sem motivo algum, o casal agrediu Lorena. “Chamei a polícia, mas os agentes disseram que não podiam enquadrar meu ex na Lei Maria da Penha porque a gente estava separado. Isso porque encontraram um facão no carro dele. Fiquei ali na calçada, com mais de 15 pessoas me olhando, ensanguentada, e nada foi feito. Meu filho me ajudou a entrar em casa”, conta Lorena. “Depois fiz o boletim de ocorrência e consegui a medida protetiva. A juíza do caso determinou que ele ficasse a 500 metros de distância de mim, mas não adiantou muita coisa. Ele me ligava pedindo pra voltar e me ameaçava quando eu negava.”
Ex entra, sim, na Maria da Penha
A Lei Maria da Penha, que determina punição para coibir atos de violência doméstica contra a mulher, é bem clara: engloba qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima. Então, se o agressor da vítima for o ex, ele ainda assim pode ser enquadrado na lei, conforme explica a promotora do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid), do Ministério Público de São Paulo, Fabiana Dal Mas.
“Os ex, inclusive, são os que causam mais problemas. A gente sempre encontra episódios de agressão quando do rompimento do relacionamento.” Ao descumprir medida protetiva, lembra a promotora, o agressor pode pegar de três meses a dois anos de prisão. “O importante é que as vítimas registrem todos os fatos no boletim de ocorrência e usem todos os meios possíveis como prova, como fotografia e testemunhas”, orienta a promotora.
A volta por cima
Lorena contabiliza: em dezembro, serão três anos desde que saiu de casa com a roupa do corpo e com os filhos e se livrou das agressões
Quanto aos filhos, que vivem com ela, o pai pega as crianças na casa de um irmão dele, para não ter contato com a ex mulher. As visitas acontecem a cada 15 dias, por acordo judicial. Os garotos também se revezam entre os pais em datas comemorativas, como o Natal, e nas férias escolares.
Durante esse tempo, passei fome e fui ajudada por vizinhos e pela minha mãe, que também apanhou por 18 anos do meu pai. “Se dependesse de mim, meus filhos não teriam contato com ele. É um homem que não acrescenta. Meu filho de 14 anos fala que tem medo dele. O mais novo pede ‘pelo amor de Deus’ para não ver o pai. Às vezes, ele me fala: ‘Lembro do papai te espancando”. O pai nunca bateu neles, mas é muito rígido. Exige ser chamado de senhor e ameaça bater.”
Justiça pode determinar afastamento dos filhos
A Lei Maria da Penha dá ao juiz poder para determinar o afastamento da mulher agredida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos. Segundo a lei, o menor tem o direito de visitar o pai ou mãe que não tem sua guarda. É o que explica a juíza do SANCTVS (Setor de Atendimento de Crimes da Violência Contra o Infante, Idoso, Pessoa com Deficiência e Vítima de Tráfico Interno de Pessoas) do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), Ana Carolina Della Latta Camargo Belmudes.
“Não raras vezes, o homem é agressor da mulher, mas não dos filhos. Cada caso deve ser avaliado com muita cautela para não prejudicá-los ainda mais, pois eles já sofrem com todo esse drama. Romper o vínculo paterno por questões que dizem respeito aos adultos, por mais difíceis que sejam, pode ser muito pior.”
Mas o texto também determina afastamento dos filhos se eles estiverem expostos à situação de violência, conforme destaca a coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Flavia Nascimento.
No artigo 22, ela lembra, consta que a Justiça pode restringir ou suspender as visitas do agressor aos dependentes, após análise de uma equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar.
“Houve ainda alteração do artigo 1638 do Código Civil que passa a prever hipótese de suspensão de poder familiar e de visitação quando houver homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave”, diz.
“Não custa ouvir os gritos e chamar a polícia”
Hoje, Lorena está namorando e participa de rodas de conversa sobre violência contra a mulher.
“Concordo que, em muitos casos, as pessoas não querem se intrometer nas brigas de casal, mas não custa ouvir os gritos e chamar a polícia. Uma vez, meu ex-marido me bateu na frente de um bar e nenhum dos dez homens que estavam ali esboçou reação. O mínimo que se pode fazer é pedir socorro. Hoje, ajudo no que posso. Já ofereci minha casa para mulher que foi agredida. Eu tive ajuda, mas muita gente não tem ninguém”.
do site Universa