A violência doméstica é particularmente cruel com mulheres com mais de 50 anos. Muitas vezes, elas se submeteram a agressões dentro de casa por décadas e viram seus filhos também sofrerem maus-tratos.
Para Elizabeth Maria Fleury-Teixeira, 64, socióloga especializada em gênero e violência contra mulheres, nossa cultura ocidental segue um padrão de invisibilizar pessoas à medida que vão envelhecendo.
“Na vida doméstica, no entanto, é onde em geral se encontram os maiores problemas dos idosos e das mulheres idosas também”, diz a pesquisadora, que ajudou a organizar o “Dicionário Feminino da Infâmia: Acolhimento e Diagnóstico de Mulheres em Situação de Violência”. “O ciclo de violência não acontece somente nas relações afetivas, mas também nas relações familiares envolvendo idosos.”
Elizabeth Maria Fleury-Teixeira, socióloga especializada em gênero
Conforme dados do serviço federal Disque 180 (Central de Atendimento à Mulher), das 92.663 denúncias recebidas em 2018, 17.253 denúncias e relatos de violência envolveram mulheres com idade igual ou acima de 50 anos _ e, em um quarto dos casos (4.317), elas tinham 70 anos ou mais.
Abaixo, veja dois relatos de mulheres nessa faixa etária que nos ajudam a entender essa realidade que precisa ser urgentemente modificada no Brasil:
Alice*, 65 anos, aposentada, Rio de Janeiro
“Fui casada por 35 anos e a violência começou na noite da lua de mel. Fomos a um restaurante. Não entendo muito de etiqueta e, naquela época, era pior ainda. Peguei o copo errado para me servir, e ele gritou comigo. Isso me marcou muito. No hotel, comecei a chorar. Ele tirou fotos de mim chorando e começou a rir. Se eu errasse, ele brigava. ‘Não é assim que faz hambúrguer! Minha mãe e minha avó faziam diferente!’. E jogava a comida fora. Mas fui levando.
Meu sonho era ter filhos e fiz tratamento porque não conseguia engravidar. Quando aconteceu foi aquela felicidade. Achei que ia melhorar, mas tudo piorou, pois tive de dividir a atenção que dava a ele. E começou a maltratar meu filho. Era tanta covardia que meu filho se urinava. Era muito triste e uma forma de também me agredir.
Eu estava na maternidade, feliz da vida, amamentando. Fui para casa com minha mãe, que ia me ajudar nos primeiros dias de recuperação do parto, mas ele gritou muito com ela, e meu leite secou. Por falta de experiência, continuei amamentando, e o bebê começou a emagrecer. Fui ao médico e não tinha leite nenhum. Meu filho tomou leite especial porque havia o risco de desenvolver deficiências mentais, segundo o médico.
Então, veio o segundo filho e mais violências. Meu marido era muito gastador e, um dia, eu disse: ‘Infelizmente, não posso comprar o que você quer. Não tenho dinheiro’. Então, ele me pediu que descesse para ajudar a pegar algo no carro. Eu não havia levado minha chave, e ele disse no elevador: ‘Agora se vira’. E foi embora, me deixando trancada para fora com meu filho de 4 anos e o outro, de seis meses, dentro de casa. Cheguei na porta e chamei: ‘Filho, você vai ter que me ajudar’. […] Havia passado quase uma hora quando consegui entrar, com o bebê já chorando de fome. Meu ex-marido chegou em casa mais de 22h e nem sequer me perguntou como eu entrei.
Um dia, eu estava no ponto de ônibus em frente ao meu prédio, e um senhor me disse: ‘Me desculpe, você não me conhece, mas seu marido não trata bem seu filho mais velho. Já avisei a síndica para chamarmos a polícia. Converse com ele, porque se ele não cuidar bem de seu filho, vai ser preso’.
Tentei me separar, mas meu marido chorava. Conseguiu reverter a decisão, e eu desisti. Mas as diferenças foram crescendo. Me agredia fisicamente e diariamente me xingava. Era viciado em filmes pornográficos e queria fazer sexo comigo às 3h da manhã. Quando eu negava, ele gritava, batia a porta dos armários e me chutava muito até eu quase cair da cama. Aí eu ia dormir no chão, mas mesmo assim ele me perturbava. Até meus 60 anos, ele fazia isso comigo. Eu era estuprada. Então eu saía de madrugada pelas ruas. Andava por quase 1 hora pelo bairro. Se eu encontrasse seguranças, parava e depois voltava para casa. Quando eu chegava, ele estava dormindo ‘gostosinho’ e eu ia fazer o almoço. Ele debochava muito de mim com amigos. Dizia que eu era péssima no sexo.
Lá em casa não tinha empregada e eu acordava cedo. Ele fazia de propósito: a sala era só dele e se deitava no sofá. Eu não podia fazer um barulho na cozinha que ele gritava: ‘Sua filha da p., você me acordou!’ Jogava panelas no chão e batia nas coisas para quebrar. Eu me assustava e ficava com medo dele. Era um sofrimento.
Me separei em 2017, quando ele me agrediu, batendo minha cabeça com muita violência na parede, jogando cerveja e cuspindo em mim. Meu filho disse: ‘Mãe, hoje você vai se desvencilhar do papai’. Fomos à Delegacia da Mulher e eu fiz exame de corpo de delito, toda suja. Em 48 horas, ele teve de sair de casa e estou em medida protetiva. Tudo graças ao meu filho, senão eu ainda estaria com ele. Não tinha forças, tinha medo que ele fizesse algo com meu filho. […] A assistente social disse que eu precisava muito de ajuda. […] Ela me encaminhou ao Ceam. Marcou uma entrevista, contei minha história e minha terapia começou. Sou muito grata.
Moro na minha casa, vida normal. Nunca precisei de abrigo, estou com medida protetiva. Estou me curtindo, me amando, sou outra pessoa. Estou me refazendo, mas não consigo me imaginar com outra pessoa, fazendo sexo como uma pessoa normal, por todas essas maldades que ele fez comigo.
Tenho uma irmã, e o marido dela é violento. Eu sempre digo a ela: ‘Você não pode aceitar essas coisas, precisa dar um basta. Nenhuma mulher merece isso’. Xingar uma vez já é um começo, não se pode aceitar. Não deixem chegar ao nível que eu deixei chegar, de me separar aos 63 anos.”
Xica da Silva, 54 anos, empreendedora, Minas Gerais
“Sou a Francisca Maria da Silva, mais conhecida como Xica da Silva. Conheci uma pessoa, o pai de minhas filhas, com quem vivi durante 10 ou 15 anos e foi muito ruim. Ele me manteve em cárcere privado. Eu não tinha o direito de ir e vir e não podia sair sozinha, ter uma agenda, ter amigos… Naquela época, eu tinha celular, mas não tinha direito nem de ter senha.
Até para cortar o cabelo tinha que ser do jeito que ele mandasse. O batom era o que ele queria, roupa, o que ele mandava vestir… Depois da primeira e da segunda filha, fui obrigada a fazer duas tentativas de aborto em casa. Desses dois abortos, eu tive minha terceira filha e um natimorto de oito meses e uma semana. Nasceu sem cérebro devido aos espancamentos. Em uma das brigas, ele me deu 15 dentadas de perfuração no seio esquerdo. Tinha muito medo dele.
Eu tinha uma moça, uma ‘secretária do lar’. Ele a pagava ‘meio que’ para me vigiar e me manter sedada. […] Eu era deprimida e pesava 101 quilos.
Depois de imaginar que eu não ia mais viver ou escapar dele porque já tinha, além de tudo, denunciado e fugido de casa, ele me pegou de volta dizendo que ia mudar e que ia ser melhor. Então fui acreditando naquelas coisas, mas ele nunca mudou.
Quando eu vi que violência doméstica era crime e que eu tinha um lugar para ir com a minha filha, denunciei na Delegacia da Mulher e fui para um abrigo. Só que ele me encontrou, e eu voltei para casa. Falei: ‘Agora não vou viver mais’.
A última violência que ele fez foi jogar o carro da ponte da Lagoa da Pampulha, quando eu cortei o rosto todo. Levei 88 pontos — dez no olho. Fui internada e fiz plástica. Não enxergo do olho direito e só enxergo 16% do olho esquerdo.
Com isso, tive um encontro comigo no hospital, dizendo: ‘Que homem é esse que eu amava, não vivia sem ele e que me espanca?’ Aí, passei a olhar para mim.
Ele foi processado. Aí veio a luta maior: eu com três meninas pequenas, sem emprego e com o rosto todo cortado. O que eu ia fazer? Eu sei e adoro cozinhar. Com pimentão, tomate e abobrinha que as pessoas davam pra gente de doação, comecei a fazer conserva catando ‘litros’ na rua. Esterilizava, comprava as tampas e vendia. Cuidei da minha vida e das minhas filhas dessa forma. Fiz o Encceja [Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos], tenho uma filha que está no sexto período de direito, outra que fez secretariado e é subgerente de uma loja de marca na cidade e outra que fez farmácia e laboratório.
Juntamos um grupo de mulheres que passaram por esse mesmo abrigo e montamos um empreendimento para gerar renda que, hoje, é o bufê Amigos de Xica. […] Dou capacitação e formação para outras mulheres e virei ativista contra a violência à mulher. Pretendo fazer uma faculdade no ano que vem.
Às vezes é muito difícil lembrar que eu quase não enxergo. Tenho que usar lupa para ler algumas coisas, mas tenho curso de informática e outros ‘n’ cursos. Tudo o que me foi ofertado eu aproveitei.”
* Nome fictício, para manter a privacidade da entrevistada
Do Catacra Livre