vai encarar? |
Adriana, Alessandra, Catarina, Celidalva, Christiane, Cleonice, Isabela, Ivanilda, Joana, Maria Luísa, Olívia e Viviane. A mais velha tem 61 anos e a mais nova, 30. A maioria é professora de capoeira, trabalha em projetos sociais e milita no movimento negro. Há entre elas pesquisadoras, historiadora e antropóloga. Em comum, todas elas têm a militância no movimento feminista e anos de dedicação à prática da capoeira. Elas são as Mulheres da Pá Virada.
O termo que passou a ser mais usado a partir do período pós-abolição para se referir de maneira pejorativa às mulheres negras e mestiças perseguidas por suas práticas culturais e costumes que lembravam a África, ou mesmo para ofender aquelas que muita gente considerava vadias, desordeiras, brigonas e valentonas, caiu como uma luva para essas capoeiristas.
Da pá virada, essas mulheres querem fazer uma revolução dentro das rodas de capoeira: dar visibilidade à história de resistência das mulheres nesse campo e denunciar a violência de gênero que existe, sim, apesar de a prática ser considerada um instrumento de promoção da cidadania e da diversidade.
“Demorei para perceber essa diferença de gênero na capoeira. De 2008 pra cá que percebi a desigualdade e a violência de gênero dentro da capoeira, um assunto que era meio tabu. Levou tempo até que algumas mulheres começaram a se unir para enfrentar essa situação”, conta Adriana Albert Dias.
Historiadora e pesquisadora da capoeira, Pimentinha, como é conhecida, tornou-se capoeirista em 1994. Autora do livro Mandinga, Manha e Malícia: uma história sobre os capoeiras na Capital da Bahia, atualmente cursa doutorado na Universidade Federal da Bahia (UFBA). O tema de sua tese é capoeira e masculinidades.
Segundo ela, há violência de gênero dentro e fora das rodas de capoeira. “É como se a capoeira tivesse códigos próprios, que estão acima dos direitos humanos, acima da Constituição, como se lá dentro pode.” Tanto é que, conforme explica, nas raras vezes em que as mulheres foram a delegacias denunciar violência física dentro da roda, saíram de lá decepcionadas com a reação dos delegados.
“‘Se você estava jogando capoeira, como veio reclamar de violência?’, perguntam. É como se ali fosse um espaço permitido. Afinal, ‘é uma luta e tudo bem’”, relata, com base em narrativas de colegas.
Sem berimbau
Atualmente, do universo de praticantes, metade é homem, e metade mulher, segundo estimativas. E embora registros históricos mostrem a presença feminina desde o século 19, acredita-se que elas chegaram bem antes. “A história inviabiliza a presença das mulheres nos espaços. Fala-se muito nos italianos. Mas hoje se sabe muito sobre a participação das mulheres nas greves operárias, por exemplo. Não é diferente na capoeira”, diz Adriana.
Apesar disso, os espaços de poder e os postos de mestre, contra-mestre e professor continuam praticamente ocupados por homens. “A gente não tem uma pesquisa sobre isso, mas sem dúvida há um numero bem menor de mulheres que ocupam esses postos de destaque. E praticamente só os homens que estão no berimbau – que comandam a capoeira. São eles também quem cantam.”
Em geral são os homens que dão seu recado. E cantam no masculino, segundo ela. E mais: Entre os cânticos ainda predominam os de conteúdo machista, que colocam as mulheres como objeto sexual. “Há músicas que incentivam a violência contra a mulher. São cantigas como ‘se essa mulher fosse minha eu tirava da roda já já e dava uma surra nela’. É uma música do samba que também é cantada na roda de capoeira.”
Ela afirma ainda que até que há mulheres no comando na capoeira. Mas esses postos superiores são ocupados majoritariamente por eles. Para elas, a conquista desses espaços é bem mais difícil e demorada. E muitas vezes, quando superam todos os obstáculos e chegam lá, muitas ainda são submetidas às ordens dos mestres que as formaram.
Adriana e suas companheiras da pá virada têm trajetórias que se cruzaram na atuação em coletivos feministas de capoeira, como o pioneiro Mandinga de Mulher, que durou alguns anos, e acabou substituído por um outro, o Maria Felipas, há cerca de dois anos. Trata-se de um grupo de estudos e intervenção, que realiza atividades em diversos espaços, acadêmicos ou não, como o Fórum Social Mundial. O nome homenageia a heroína da independência da Bahia, a marisqueira Maria Felipa de Oliveira, que segundo a tradição oral era “capoeira” também.
“Fizemos uma mesa redonda, chamada ‘caladas nunca mais’, sobre a importância da denúncia da violência contra as mulheres. Fazemos também oficinas de capoeira ministradas por várias mestras, para mostrar o protagonismo das mulheres”, conta.
Essa luta pelo fim da desigualdade ganhou um forte aliado. Em outubro de 2018, a Fundação Gregório de Mattos, vinculada à Prefeitura de Salvador, aprovou o projeto Mulheres da Pá Virada: Histórias e Trajetórias na Capoeira, que consiste em um documentário sobre a presença feminina. O prêmio pago pelo edital permitia produzir um filme de 20 minutos. Mas uma vaquinha online proporcionou dobrar o tempo de produção. As doações vieram de pessoas dos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Inglaterra, Alemanha Espanha, Suíça e Itália. entre outros países.
O documentário foi lançado em julho (confira trailer realizado para o financiamento coletivo) e tem sido apresentado em diversos espaços, sempre seguido de debates. Entre outros lugares, já houve apresentação no Sesc de Piracicaba e no Cine Pagu da Unicamp, além de duas apresentações na periferia de São Paulo e em Ribeirão Preto. O vídeo só será compartilhado no Youtube em 2020.
Reconhecida em 2014 como patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), a capoeira tem raízes africanas. E se fez no Brasil como resistência à opressão da escravidão sobre o povo e sua cultura. E também como técnica de defesa pessoal que continuou sendo usada, mesmo sendo considerada subversiva até a década de 1930. Com o governo de Getúlio Vargas, ganhou status de esporte nacional, tornando-se, aos poucos, uma espécie de disciplina contra o preconceito racial e a discriminação social.
E alcançou então um novo patamar, sendo reconhecida como instrumento de cidadania e de educação. Está presente em boa parte dos projetos sociais nas periferias, como forma de ajudar a resgate a juventude da violência. “Não podemos aceitar essa contradição, que a capoeira ainda seja um espaço de desigualdade e de violência contra a mulher. Não podemos aceitar que algo que foi criado para libertar seja utilizado como instrumento de violência, de opressão”, diz Adriana.
do site Rede Brasil Atual