Homens e mulheres que viram a vida quase acabar diante de uma tela, quando só procuravam… Felicidade.
“Porque é o que você quer escutar. Você quer escutar isso, você quer escutar coisas bonitas”, diz uma mulher.
“Perdi tudo: carro, loja, saí vendendo tudo”, conta um homem.
Vítimas de um crime global que disparou no Brasil: o golpe do romance na internet.
“Isso não é só um grupo isolado, mas podem ser vários grupos agindo e no mundo”, explica a delegada Sandra Mello.
Uma fraude que atinge brasileiros de todas as idades e classes sociais, mas leva pouca gente pra cadeia.
“O negócio tá lá do outro lado do mundo, a polícia tá aqui, não vai fazer nada’”, lembra uma vítima.
Uma onda de crimes sem solução que fez surgir um outro tipo de pessoa atrás da tela do computador.
“Eu tenho um certo prazer em poder pegar os endereços de email, divulgar no meu blog o endereço desses golpistas e expor as fotos que eles estão usando para que outras pessoas possam pesquisar”, conta uma caçadora de golpistas.
Voluntárias que querem expor as táticas dos criminosos. Mulheres que, da sala de casa, já ajudaram a prender estelionatários em outros continentes.
“Pra mim não existe um golpe mais covarde do que esse. Então por isso eu optei por ajudar as vítimas a se livrar desse tipo de golpe”, diz uma voluntária.
Quem são, afinal, as caçadoras de golpistas – brasileiras que tentam enfrentar uma fraude que fez milhares de vítimas no Brasil? Quais inimigos elas perseguem? E por que a atuação delas causa polêmica? Entenda na reportagem especial do Fantástico.
“Eu levo meu neto na escola. Vovozinha então leva o neto na escola. De noite eu faço academia. Mas tem dia que eu estou na esteira e tô no grupo, dia que tem problema eu tô no grupo”, diz a caçadora de golpistas Glauce Lima.
O grupo que virou rotina na vida da Glauce é uma comunidade internacional de caçadoras de golpistas. Ela montou a página numa rede social depois que uma amiga, alemã, caiu num golpe de romance virtual.
“Ela pediu socorro. Ela falou: ‘me ajuda?’. Eu não conhecia, eu não sabia desse tipo de golpe. E eu entrei em todos os grupos, comecei a prestar atenção, conheci mais pessoas, mais caçadoras, todas americanas. Criei páginas em sites de relacionamento…”, conta.
Golpistas usam fotos reais de militares pra enganar homens e mulheres
Tanta pesquisa revelou uma fraude insistente: golpistas que usam fotos reais de militares pra enganar homens e mulheres em busca de companhia.
“Quando eu tava nesse site de relacionamento tentaram me enganar com a foto do soldado americano, aí eu coloquei na minha cabeça que eu ia descobrir quem era o verdadeiro soldado”, conta Glauce.
Glauce localizou o perfil real do soldado numa rede social. E conseguiu um aliado poderoso para os grupos que denunciam as contas impostoras. “Ele disse: ‘eu não sabia que tinham esses grupos’. Eu falei: ‘tem’. Aí ele pediu para entrar no grupo pra ajudar”, relembra.
Com a ajuda de Eric von Ebert, que deixou o Exército e hoje é policial na Flórida, a caçadora virtual conseguiu tirar do ar mais de mil perfis falsos que usavam as fotos do ex-soldado.
Nesse submundo de crimes em que mulheres são alvos tradicionais, homens também estão na mira dos bandidos. Para o Hudson, a ajuda das caçadoras de golpistas quase não chegou em tempo. “Ela disse pra mim: ‘Hudson, você não mande mais nada, mais nada, não escreva mais nada, porque eles te cercaram’”, lembra.
E tudo porque esse morador de Curitiba acreditou que dava pra viver, de novo, um amor.
“Eu fiquei casado, assim, durante dez anos com uma pessoa, né? Depois eu separei e depois eu não tive mais ninguém. Você fica na expectativa que seu coração seja preenchido um dia. Aí a gente vai buscar nos sites de relacionamentos alguma coisa, um perfil que seja compatível com o seu e tal, né? Achei linda. É… Linda a menina. Muito bonita. E militar, militar. Algumas fotos de roupas militares davam a entender que estava em alguma missão. Falava que eu era uma pessoa gentil, amável. Acho que achei uma pessoa certa, assim”, relembra.
Nessa hora surgem os pedidos de dinheiro. Pra uma passagem aérea, uma cirurgia de última hora ou até pra liberar o envio, pelo correio, de um misterioso tesouro do Oriente.
“Aí foi quando ela mencionou uma missão na qual um ataque num palacete de um sheik lá, um árabe. E que dentro do palacete tinha alguns milhões de dólares que foram retirados e que iam ser repartidos entre os soldados”, conta a vítima.
O Hudson não pagou, mas só teve certeza da enganação depois de ouvir um conselho que veio de longe.
“O homem tem muita dificuldade pra poder denunciar. Então quando ele chega e descobre, ele não faz denúncia, ele prefere se calar”, conta uma caçadora.
O anjo da guarda de Hudson é uma pequena empresária de Cuiabá que optou por não se identificar. “O que precisa aparecer é minhas ações, não é meu rosto”, diz. Sob o codinome Crystal Brasil, ela já denunciou, no seu blog e em redes sociais, mais de quatro mil golpes de romance contra homens e mulheres no país.
Entenda quais são os indícios de uma conta falsa na internet:
“Eles seguem um roteiro. Eles não mudam esse roteiro. Então pra nós é muito fácil identificar isso, mas pra vítima é novidade, então pra ela não é fácil”. Um sinal de um perfil impostor, segundo a Crystal: quase nenhuma resposta pública a comentários.
“As mulheres todas comentando, elogiando. Bom dia, um belo homem. E nenhuma resposta dele. Nenhuma resposta dele”, explica.
Outros indícios de conta falsa: nenhum parente entre os amigos e poucas fotos pessoais, escolhidas a dedo pra impressionar. “Muita foto com criança, com animais. Fotinha dele fazendo comidinha”.
As caçadoras de golpistas usam muito a chamada busca reversa de imagens. São ferramentas que indicam onde a foto aparece na internet.
“Aqui uma vítima manda um perfil pra verificar se é golpista ou não. Você clica e pede pra buscar as imagens. Quando é alguém conhecido, você vai achar com muita facilidade, que é o caso dele. Ele é grego, é um político. Já avisei ela que é uma foto bastante conhecida e que é um golpista. A dificuldade é a falta de apoio da polícia, das autoridades, passar a enxergar isso de maneira diferente. Então a gente não tem apoio de ninguém pra fazer isso”, explica Crystal.
O fenômeno das caçadoras de golpistas é também resultado da falta de ação das autoridades. Diferentemente de outros países, o Brasil não tem estatísticas oficiais sobre golpes de romance virtual, o que dificulta o combate a um crime que já é marcado pela baixíssima notificação.
“Pelo medo, pela vergonha, pela dificuldade em se expressar, ela acaba não notificando as autoridades policiais e acaba assim não tendo investigações de casos como esse. E a primeira das questões é não agir com preconceito em relação a essas pessoas, em não julgar o que elas viveram”, diz a psicóloga Beatriz Bambilla.
Um comerciante do interior do Rio de Janeiro viveu, pela internet, o que ele imaginava ser um recomeço.
“Aí me entra ela de repente. Me pedindo amizade. Aí começamos a conversar. Aí ela falou que queria arrumar alguém pra um relacionamento sério, pra um amor sério, essas coisas toda. Que gostou muito de mim, queria casar comigo, queria ter filho”, conta.
Uma promessa de futuro a dois que reluzia. “Disse que tinha uma caixa de ouro, que os pais delas faleceram, fizeram um depósito pra ela. ‘Mas tu tem que resolver o problema do ouro, tem que pegar lá que esse ouro vai fazer a gente ficar melhor de vida ainda’. Depois tinha que pagar a companhia de segurança pra tirar o ouro de lá”, conta.
Foram R$ 120 mil perdidos no golpe. “Peguei dinheiro com minha irmã emprestado duas vezes, peguei com um amigo meu três vezes. Vendi o carro também pra pagar isso aí. Eu cheguei até a comprar aliança”.
A “noiva” usava o rosto de uma ex-atriz pornô polonesa – que estampou até uma montagem grosseira de um passaporte. De tanto ter fotos manipuladas por bandidos, ela gravou um alerta: ‘sou vítima também, porque estão usando minhas fotos’.
O Facebook informou que não permite atividades fraudulentas em suas plataformas e que usuários podem denunciar contas suspeitas.
No caso do comerciante fluminense, o crime ficou impune. Mas não foi só este. Nenhuma vítima entrevistada nesta reportagem levou as denúncias à frente.
“Já tive na delegacia umas duas vezes, só que eu desisti”, diz o homem.
Enquanto a impunidade prevalece no Brasil, as prisões por golpes na internet, não apenas os de romance, deram um salto no resto do mundo: 1,7 mil há três anos, mais de 72 mil em 2019, puxadas pela China.
O Brasil é hoje um dos polos mundiais dos golpes de romance na internet
— Tim McGuinness, fundador da ONG Scars
Os dados são de uma ONG americana liderada por Tim McGuinness, um pioneiro da indústria da tecnologia, que avisa: “lamento dizer, mas o Brasil é hoje um dos polos mundiais dos golpes de romance na internet. E a realidade é que nenhum país está preparado para lidar com isso”.
Nos Estados Unidos, mais de 18 mil vítimas denunciaram perdas de US$ 362 milhões com golpes de romance em 2018. Um aumento de 70% sobre o ano anterior.
No Brasil, as poucas investigações desses crimes acabam ficando com os estados. Como uma ação em dezembro de 2019 que apreendeu celulares, HDs e documentos numa lan house e numa igreja na capital paulista.
Foi a segunda fase de uma operação da Polícia Civil do Distrito Federal, que há dois anos prendeu três estrangeiros suspeitos de integrar uma quadrilha especializada. Os três nigerianos foram presos em São Paulo, onde viviam legalmente.
“Nós tivemos caso da mulher perder em torno de R$ 600 mil. Há uma divisão de tarefas muito clara na organização criminosa. Uma pessoa, brasileira, que inclusive disponibilizava sua conta bancária para receber o dinheiro das vítimas”, explica a delegada Sandra Mello.
A Glauce, a caçadora de golpistas do começo da reportagem, ajudou a prender um suspeito em outro país.
“Uma amiga me procurou que tinha caído em um golpe. Aí nós começamos a mandar e-mail pra polícia da Nigéria em Abuja, porque esse nigeriano que tinha aplicado golpe também era de Abuja. O policial da Nigéria sugeriu que a gente enviasse um pacote pra ele, né. Quando esse pacote chegou, a polícia já estava lá e prendeu ele. Ele foi preso por conta da denúncia”, conta Glauce.
Uma outra caçadora, do interior de São Paulo, que arrisca suas primeiras ações nesse universo, tem atraído os golpistas pra longas conversas. A Meg prefere gastar o tempo das quadrilhas de outra forma. “Eu fui dando atenção até conseguir o número da conta que ele queria que eu depositasse. E aí eu comecei a brincar um pouco, eu fazia depósitos em envelopes vazios e mostrava o comprovante”.
A viúva do interior paulista é considerada a pioneira de uma rede no Brasil que ela estima somar hoje 200 caçadoras de golpistas. “A sensação é muito boa quando chega mensagem assim: ‘muito obrigada, Meg, por você ter publicado no seu blog, eu achei a foto de fulano, ele estava dando golpe em mim, eu tava quase enviando dinheiro, meu Deus’”, conta.
Mas entre as caçadoras muitas vezes prevalece a sensação de estar enxugando gelo.
“É um sentimento de impotência, você ver aquelas pessoas depositarem tanta confiança em você e ao mesmo tempo você fala: ‘olha, eu não consigo’”, diz Glauce.
Também há quem critique a ação dessas voluntárias, como o pioneiro da indústria da tecnologia que hoje lidera uma ONG que é referência mundial contra os golpes na internet.
“Muitas vezes, usando perfis falsos para atrair golpistas, elas usam as mesmas táticas dos bandidos. E não são psicólogas pra lidar com vítimas de traumas”.
Ele calcula, a partir de uma projeção sobre número de usuários de internet e denúncias desses casos no Brasil, que pelo menos 200 mil pessoas tenham sido vítimas de golpes de romance virtual no país nos últimos vinte anos. Uma situação que, para ele, tende a se agravar.
“Sabemos que no Brasil quase ninguém denuncia esses casos, principalmente pelo preconceito social e pelo modo como a polícia minimiza esses crimes, colocando a culpa na vítima”.
“A gente tá falando de pessoas que foram solidárias, pessoas que se envolveram, pessoas que acreditam nas relações e que são golpeadas dessa forma”, diz a psicóloga Beatriz Bambilla.
“Minha família toda me avisou, os meus amigos todos me avisaram. ‘Pai, o senhor está num golpe’. Mas eu não acreditava”, conta a vítima do Rio de Janeiro.
“Eu vou procurar até conseguir provar pra uma vítima que ela está sendo vítima”, diz Meg.
“É tudo tão muito bem feito. É muito difícil você não cair. Hoje eu sei que a nossa arma contra eles é a informação”, diz Crystal.
“Levantar a cabeça e ir pra frente. A vida segue, segue, vai seguindo. Não pode se entregar”, diz Hudson.
Do Fantástico/G1