O processo de impedimento da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) foi marcado pela violência em diversos sentidos, a começar pela linguagem. É o que constata pesquisa de doutorado realizada por Perla Haydee da Silva, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Defendida no fim do segundo semestre do ano passado, a tese avaliou as construções discursivas contra a petista durante o impeachment.
Professora na área de Estudos Linguísticos, Haydee analisou cerca de 3 mil comentários direcionados à presidenta na página do Movimento Brasil Livre (MBL) no Facebook. Por meio da ferramenta API (Application Programming Interface) e da linguagem de programação Python, foram considerados comentários que apresentavam as letras “DIL”.
Quatro termos giravam em torno deles: Louca, burra, prostituta e nojenta. Segundo a especialista, os comentários ofensivos revelam uma sociedade machista, que objetiva excluir as mulheres dos espaços públicos e de poder.
“Esses discursos que associam a mulher a um estereótipo de loucura, burrice ou devassidão moral, se repetem. Não foi uma exclusividade com a ex-presidenta. É histórico esse processo de deslegitimar a opinião de uma mulher e o comportamento feminino”, afirma Haydee.
“Nessa lógica, a mulher serve apenas para cozinhar, para pilotar fogão. Se repete em muitos comentários: ‘Dilma, vai pra casa’. ‘Vai lavar roupa’. ‘Vai vender Jequiti’. Sempre associando a imagem da mulher a um espaço doméstico. Ela não é capaz de estar em um cargo de poder ou de mando, tem que estar em casa. Ela é para esse espaço e o homem que ocupe o espaço público”, acrescenta.
A pesquisa também mostra como a competência das mulheres é muito mais questionada. Além disso, expõe como os possíveis erros cometidos por Dilma foram e ainda são julgados de forma mais perversa.
O livro Dilmês – O idioma da mulher sapiens, de autoria de Celso Arnaldo Araújo, é citado na tese como exemplo. A obra esmiúça discursos da ex-presidenta de forma pejorativa e afirma ser uma sátira política que realiza uma “viagem ao centro do Saara cerebral de Dilma Rousseff”.
Na opinião de Haydee, no entanto, a crítica é bem mais atenuada em relação aos homens. “O Bolsonaro comete vários deslizes linguísticos e não é tão cobrado, não é associado ao estereótipo da burrice, como era feito e ainda é feito em respeito a Dilma. Esse discurso até hoje se repete. O ‘Dilmês’, a questão das pérolas da Dilma, da ‘Dilmanta’… Ela sendo descreditada, associada ao risível”.
De acordo com a tese, feita à luz das teorias de autores consagrados como Michel Foucault e Judith Butler, as ofensas contra a então presidenta – xingada de “puta” inúmeras vezes – evidenciam a imposição de uma moral sexual.
A professora da UFMT grifa que, para os autores dos comentários, a mulher ideal deve ser “bela, recatada e do lar”.
Por outro lado, “essa mulher que sai desse espaço [do lar] para ocupar um espaço de comando, que possui uma postura mais assertiva, e às vezes entendida como mais masculina, tem uma feminilidade desviante, que não é desejável. E acaba-se construindo para essa mulher uma imagem de abjeção, de uma figura nojenta, que é abominável”.
A pesquisa também cita como exemplo a imagem de um adesivo de carro para ser colocado na entrada do tanque de combustível, no qual Dilma estava com as pernas abertas, que circularam massivamente nas redes sociais. Os adesivos foram vendidos pela internet durante o processo de impeachment.
A tese conclui ainda que a representação degradante da ex-presidenta, seja por comentários ou imagens, coloca em evidência percepções machistas que sustentam um julgamento moral que atinge todas as mulheres.
Matéria de Lu Sodré, para o Brasil de Fato