Prepare o estômago.
Fevereiro de 2019, em Manaus – AM. Uma adolescente de 15 anos, acompanhada da irmão mais velha, estava indo pra escola quando um conhecido delas apareceu e se ofereceu para acompanhar as duas. A irmã mais velha ficou numa parada de ônibus e a adolescente seguiu seu caminho a pé, junto com o conhecido. Em determinado momento, o rapaz chamou a moça pra ir até à casa dele.
Chegando lá, um adulto e mais dois adolescentes estavam na casa, bebendo e usando drogas. A menina foi violentamente estuprada durante 4 horas, por todos eles.
Depois de “liberada”, a jovem procurou ajuda. No hospital, os médicos constataram que ela teve a vagina dilacerada, hemorragia interna, precisou passar por três cirurgias e ficou sete dias internada.
Ameaçada pelos suspeitos do estupro coletivo, a família não quis fazer a denúncia. Mas a Maternidade Moura Tapajóz, onde a menina foi atendida, se encarregou de notificar a polícia. Quase um mês depois, dois suspeitos foram presos.
A história, que já é pesada por si, ganhou um acréscimo de brutalidade: os acusados do estupro foram absolvidos da acusação. Na sentença, o juiz responsável alega que a vítima teria sido a responsável por organizar o encontro. A decisão judicial pediu ainda que o MP-AM investigasse a adolescente por denunciação caluniosa. Um bônus extra.
A Delegacia Especializada em Crimes contra Crianças e Adolescentes (Depca) identificou dois suspeitos, além de dois menores e outro homem envolvidos no caso. A Justiça determinou a prisão preventiva dos adultos e a apreensão dos adolescentes. Um homem de 19 e outro de 23 anos suspeitos de cometerem o crime foram presos no dia 1º de março de 2019, em Manaus. Após a prisão, eles confessaram o crime para a polícia.
O processo foi conduzido, desde o início, pela juíza titular da Vara Criminal Especializada em Crimes Contra Crianças e Adolescentes, Articlina Oliveira Guimarães. Ela aceitou a denúncia da promotoria contra os réus, ouviu os depoimentos de todos os envolvidos e manteve a prisão preventiva dos acusados.
Em dezembro do ano passado, poucos dias antes do recesso do judiciário, saiu a sentença do caso – mas assinada pelo juiz Fabio Lopes Alfaia. O magistrado absolveu todos os acusados e pediu para o Ministério Público investigar a adolescente por crime de denunciação caluniosa contra os réus.
O Juiz Fabio Alfaia também considerou, na sentença, que houve contradições no depoimento da vítima. Com base nos depoimentos dos réus e de testemunhas, ele concluiu que a adolescente organizou o encontro sexual.
Por meio de nota, Alfaia informou que realizou o julgamento do processo no dia 17 de dezembro e entendeu por bem concluir, após a fase de cuidadosa tomada de depoimento da vítima, de testemunhas e dos réus, pela não ocorrência de qualquer crime ou violência de qualquer espécie.
“Concluiu que se tratou de uma relação sexual consentida a qual veio a ter sequelas físicas inesperadas, o que resultou na absolvição dos acusados na forma do inciso III do artigo 386 do Código de Processo Penal e na imediata revogação da prisão preventiva. A decisão ainda cabe recurso” disse em nota.
A juíza Articlina Oliveira Guimarães não explicou no processo o motivo de ter preferido não dar a sentença. Por meio de nota, o Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) informou que o juiz Fábio Lopes Alfaia foi designado pela Portaria n.º 2606/2019, de 16/09/2019, para responder juntamente com a juíza Articlina Guimarães pela 2.ª. Vara de Crimes contra a Dignidade Sexual de Crianças e Adolescentes.
“Significa dizer que ele passou a ter competência para atuar em todos os processos que tramitam na 2.ª Vara, assim como a Dra. Articlina. Assim, ambos têm competência para proferir sentença nos autos do processo que tem como vítima a menor mencionada. O Dr. Alfaia não foi designado exclusivamente para proferir sentença nestes autos, ele já havia sido designado para atuar junto a 2.ª Vara desde setembro de 2019”, disse o Tribunal.
Recurso contra sentença
Um recurso assinado pelo promotor Rogério Marques Santos foi encaminhado ao Tribunal de Justiça. Nele, o Ministério Público reconheceu que houve contradições no depoimento da adolescente, mas diz que isso não é o suficiente para apontar um consentimento da adolescente para o ato.
O promotor comenta que a adolescente deu versões diferentes de como chegou até o local do crime, disse que era virgem, mas depois admitiu que mantinha relação com um namorado, além de que conhecia pelo menos um dos réus antes do estupro.
Apesar da contradição, o Ministério Público apontou ainda que vítima não queria manter relações sexuais com o grupo, chegando a empurrar os agressores. “Isto soa como consentimento para o sexo?”, questionou o promotor.
Santos conclui que a sentença do juiz Alfaia “é um atestado de que meninas são objetos nas mãos dos homens e que a mulher não tem dignidade sexual”.
O promotor do caso, Géber Mafra Rocha, também não concordou com a decisão do juiz. “Um crime. Sendo um crime, reclama providência, que é o ato condenatória e sentença penal condenatória”, disse Rocha após a sentença do caso.
A Vara Especializada em Crime contra a Dignidade Sexual de Crianças e Adolescentes informou que houve recurso do Ministério Público, o qual foi recebido pelo Juízo e está aguardando as contrarrazões de um dos réus. Após o recebimento, o recurso subirá para o Segundo Grau.
A defesa de um dos presos informou que somente se pronunciará após trânsito em julgado do processo, tendo em vista que os autos correm em segredo de Justiça.
Diante de tantos equívocos, tanta injustiça e tanta violência, nem sabemos por onde começar.
da redação, com informações do G1/AM