Em 2014, depois que viralizou no Facebook a foto em que um homem segurava um cartaz com a frase “eu não mereço mulher rodada”, Renata Rodrigues e Débora Thomé decidiram criar um evento na rede social para protestar com humor contra o machismo do post. O sucesso da ideia, que atraiu centenas de participantes, as levou a fundar “o primeiro bloco feminista” do Carnaval do Rio.
“O Carnaval é um espaço muito machista. Quando chegamos, tinha muita mulher segurando estandarte de bloco, mas quase nenhuma tocando ou na produção”, diz Renata.
Hoje, Renata, Débora e mais duas amigas são responsáveis pela organização do Mulheres Rodadas, que se prepara neste ano para seu sexto desfile com uma banda formada por 11 mulheres e apenas um homem. Não há uma restrição para a participação masculina entre os instrumentistas, mas a liderança é feminina.
Essa é uma transformação recente na história centenária do Carnaval, uma festa na qual, no início, mulheres “de família” não deveriam participar — e, mesmo quando isso mudou, coube a elas um papel secundário e por vezes invisível aos olhos da maioria, em uma folia dominada por homens.
Isso porque, mesmo que o Carnaval seja visto muitas vezes como uma chance de alguém ser o que desejar e de subverter os papéis sociais que exerce no resto do ano, a ideia não passa de um mito, dizem pesquisadores.
“Apesar de se dizer que o Carnaval subverte mecanismos de controle social, ele reflete a vida — e a maneira como os sexos se veem — nos outros 365 dias do ano. A mulher é subjugada no emprego e na família e também é subjugada no momento de festa”, diz Olga von Simson, professora do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de Carnaval em Branco e Negro (Edusp).
O bloco feminista Mulheres Rodadas foi criado por duas amigas após um post machista viralizar nas redes sociais
A origem do Carnaval brasileiro remonta aos entrudos, tradição trazida pelos portugueses na época da colonização em que as pessoas saíam às ruas nos dias que antecediam a Quaresma para travar batalhas com baldes, seringas e bisnagas d’água, além de limões e laranjas-de-cheiro, bolas feitas de cera com água perfumada dentro. Esse costume logo se espalhou do Rio de Janeiro para outras cidades do país.
“Mas poucas mulheres participavam, porque, durante todo período colonial, a rua era um espaço masculino. O papel da mulher era ficar em casa”, diz Luiz Felipe Ferreira, criador do Centro de Referência do Carnaval e professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
O pesquisador explica que era mais comum as mulheres participarem do chamado entrudo familiar, que ocorria dentro das residências. “Essas festas também eram uma forma de contato social e uma chance das mocinhas assumirem a iniciativa nas relações amorosas, ao jogar um limão-de-cheiro no rapaz em que elas estavam interessadas”, afirma Ferreira.
Esse tipo de festa reinou sozinha até a primeira metade do século de 19. A partir de então, as antigas tradições ligadas aos portugueses foram aos poucos dando lugar ou se misturando com novos costumes importados da Europa. Entre eles, um Carnaval mais sofisticado e elegante, com bailes a fantasia e desfiles de carros alegóricos, organizados pelos homens que estavam à frente de sociedades carnavalescas.
Nos bailes, as mulheres podiam assistir à festa dos camarotes, mas não pular Carnaval no salão. Também era das janelas dos sobrados que elas viam os carros alegóricos desfilarem pelas ruas.
A participação feminina, entretanto, não era totalmente vetada nos cortejos. “As prostitutas polonesas e francesas das casas mais ricas e sofisticadas desfilavam luxuosamente despidas nos carros. Foram elas, inclusive, que ensinaram aos homens como se fazia um Carnaval, porque muitos deles nunca tinham ido à Europa”, diz Von Simson.
A cientista social conta que não demorou para que mulheres cariocas, insatisfeitas por não poderem participar do Carnaval, procurassem o escritor José de Alencar em busca de uma solução. Ele propôs, então, que fossem feitos bailes em que elas “pudessem tomar parte e não ser meras espectadoras”.
Os arquivos da Biblioteca Nacional apontam ainda que, em 1907, surgiu no Rio um novo tipo de celebração que seria adotada em outras cidades brasileiras. Nos “corsos”, as famílias mais ricas da cidade desfilavam em luxuosos carros abertos pela antiga Avenida Central.
A iniciativa partiu das filhas do então presidente Afonso Pena e foi copiada pelos outros donos de automóveis na época. Os ocupantes jogavam confete, serpentina e lança-perfume em quem estava nos outros carros ao longo do trajeto, enquanto as classes populares assistiam a tudo do chão.
“Mesmo assim, as mulheres participavam dos bailes e desfiles como acompanhantes do pai ou do marido, em um papel secundário de filha ou mulher”, diz Ferreira.
Com os blocos e cordões, começou a se afrouxar o controle sobre a participação das mulheres na folia
O controle sobre a participação da mulher no Carnaval começou a se afrouxar com o surgimento dos cordões, blocos e ranchos carnavalescos, na segunda metade do século 19.
Organizados por grupos de amigos e famílias das camadas sociais menos abastadas, os cordões e blocos desfilavam a pé pelas ruas da cidade.
A presença feminina foi de início bastante restrita ou mesmo nula nestes cortejos, porque eles eram proibidos pela polícia. Foi somente mais tarde, nas primeiras décadas do século 20, com o fim da repressão, que as mulheres começaram a participar em maior número.
Já nos ranchos, que faziam desfiles mais organizados e traziam elementos até então inéditos, como enredo e instrumentos de sopro e cordas, a participação das mulheres foi mais precoce.
Elas cumpriam papéis fundamentais nestes festejos, confeccionando as fantasias e adereços e organizando eventos para arrecadar o dinheiro necessário para bancar o cortejo — mas não só.
O Carnaval como conhecemos hoje existe em grande parte graças às “tias”, mulheres baianas que abriam suas casas para a reunião dos sambistas ao longo do ano e ofereciam assim um espaço seguro para que eles se reunissem sem serem perseguidos pela polícia.
“As tias são o epicentro dessa cultura do Carnaval. Suas casas eram espaços de sociabilização e proteção”, diz a jornalista Bárbara Pereira, doutora em história social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Uma das mais famosas entre essas matriarcas do samba é Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata. Mas havia muitas outras, diz Pereira, que entraram para os registros históricos apenas como apoiadoras de seus maridos ou simplesmente foram esquecidas.
“Muitos dos relatos que temos hoje sobre o início do Carnaval foram feitos por homens, e quase não há registros da participação das mulheres, porque estes homens não as enxergavam. Elas foram invisibilizadas”, afirma a pesquisadora.
O Carnaval passaria por uma nova transformação entre o final dos anos 1920 e o início dos anos 1930, quando foram fundadas as primeiras escolas de samba — e, com elas, as mulheres começaram a conquistar um espaço próprio nos desfiles de Carnaval.
“O matriarcado na história do samba fez que houvesse uma presença feminina significativa desde o início das escolas, com a ala das baianas e a ala das pastoras, que cantavam em coro o samba-enredo junto com o puxador”, diz o historiador e escritor Luiz Antônio Simas.
Isso abriu caminho para que as mulheres conquistassem com o tempo outros postos nos desfiles das escolas de samba. Simas destaca que a primeira mulher a sair na bateria foi Dagmar da Portela, em 1939.
Já os primeiros sambas-enredo assinados por autoras são da década de 1950. Carmelita Brasil, na Unidos da Ponte, foi a pioneira da composição, e, em 1965, Dona Ivone Lara tornou-se a primeira mulher a assinar um samba-enredo por uma grande escola.
“Aos poucos, como repercussão de mudanças na estrutura da sociedade brasileira, as mulheres vão conquistando espaços também em um meio bem machista como o do samba”, diz Simas.
Foi a partir dos anos 1930 que as mulheres brasileiras conquistaram direitos políticos e de receber salários iguais. Passaram a não mais ter de pedir autorização aos maridos para trabalhar, ter conta em banco ou viajar sozinhas. E foram reconhecidas legalmente como iguais aos homens.
Ao mesmo tempo, na Avenida, elas ganham cada vez mais protagonismo nos desfiles, como passistas, rainhas de bateria e destaques de carros alegóricos.
Esses postos são frequentemente vistos apenas como mais uma expressão do machismo no Carnaval, que trata as mulheres como objetos sexuais. Mas Bárbara Pereira, que pesquisou as passistas em seu doutorado, diz que não é dessa forma que elas próprias se enxergam.
“Essas mulheres têm orgulho de serem passistas, porque muitas vezes é uma tradição passada de mãe para filha. E, a partir dos anos 1990, com o aumento da escolaridade feminina, muitas delas não são mulatas-show, mas estudantes e trabalhadoras que sambam porque querem sambar”, diz a pesquisadora.
Ao mesmo tempo, as mulheres estão vencendo gradativamente o preconceito nas escolas de samba ao tocar instrumentos considerados “de homens”, como surdo, caixa-de-guerra e tarol, e assumirem as funções de carnavalescas, diretoras e mestres de bateria, puxadoras e, inclusive, presidentes de agremiações.
“Mas ainda são poucas nestas posições, porque persiste a ideia de que há nas escolas lugar de mulher e de homem, especialmente nos postos de poder, como a diretoria, e de mais prestígio, como a composição”, diz historiadora Marília Belmonte, que pesquisa a velha guarda e a ala das baianas de seis escolas de samba de São Paulo.
As mulheres conquistam espaço no Carnaval de rua
Belmonte diz que um movimento semelhante começou a ocorrer também com os blocos de rua, em meio a um debate recente e mais amplo sobre o papel das mulheres na sociedade atual.
“Isso gera uma maior conscientização entre as mulheres e faz com que elas questionem o machismo e busquem ter maior representação no Carnaval, ocupando espaços antes reservados aos homens e criando seus próprios blocos, onde conseguem se expressar sem serem cerceadas nem sofrer assédio”, diz a historiadora.
Atualmente, já existe mais de uma dezena de blocos pelo país que são organizados por mulheres ou até mesmo exclusivamente femininos, como Ilú Obá de Min, Mulheres de Chico, Não é Não, Pagu, Filhas da Lua, Toco-xona e Siga Bem, Caminhoneira.
Renata Rodrigues, do Mulheres Rodadas, diz que o Carnaval de rua mudou nos seis anos em que seu bloco feminista desfila no Rio de Janeiro.
“Existe hoje uma discussão muito mais ampla sobre o assédio e uma consciência maior de que não é porque a mulher está pulando Carnaval que ela pode ser assediada ou violentada. Isso aconteceu porque as mulheres que apareceram no Carnaval colocaram esse assunto em pauta”, diz.
Ao mesmo tempo, isso fez da folia um espaço mais seguro para as mulheres e no qual elas se sentem mais confortáveis para exibir o corpo conforme quiserem.
“Nós vemos hoje muito mais mulheres com o corpo à mostra. Com o maior número de mulheres, elas se sentem protegidas e capazes de dizer ‘o corpo é meu, não quero que me toque’. É um corpo que não está ali para ser consumido. É um corpo político, que carrega uma mensagem de liberdade.”
Também há mais mulheres participando ativamente do Carnaval, tocando instrumentos, montando suas bandas e fanfarras e criando seus próprios projetos. “Temos muito orgulho de ter ajudado nesta transformação junto com outros coletivos de mulheres.”
O Mulheres Rodadas realiza oficinas ao longo do ano para ensinar mais mulheres a tocar instrumentos. O desejo de suas criadoras agora é passar a oferecer também cursos para que elas ocupem postos de comando em toda a cadeia do Carnaval.
“Ainda somos franca minoria na gestão. Queremos ter cada vez mais mulheres em posição de liderança, mas é justamente neste espaço que é mais difícil conseguir avançar.”
Da BBC