Reportagem de capa da Época desta semana fala sobre os órfãos do feminicídio. A pedido da revista, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública projetou que esse crime hediondo deixa mais de dois mil órfãos no país todos os anos. Em muitos casos, as crianças perdem ao mesmo tempo a mãe, assassinada, e o pai, que vai preso. Mas apesar da complexidade do assunto, não há no Brasil uma rede de proteção que se articule para facilitar a vida dessas famílias. A matéria mostra o périplo de Vane Correia Machado, que já fez “vários requerimentos” para conseguir dar entrada no INSS e voltar a receber o Bolsa Família depois que sua filha, Aline, foi morta a pauladas pelo companheiro em sua frente e na presença dos netos, de apenas dois e nove anos. “Fui lá, levei o atestado de óbito para fazer a coisa certinha. E pedi novamente o benefício como responsável por eles, mas até agora nada”, lamentou ela à repórter Renata Mariz.
“Depois que a mãe é morta, o problema da violência doméstica é riscado e esquecido e as consequências passam a ser da família que assumirá a criação das crianças”, constatou José Raimundo Carvalho, pesquisador do tema e professor da Universidade Federal do Ceará. Procurado pela reportagem, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos saiu pela tangente e disse que estuda ações para tratar “a questão dos órfãos do feminicídio”. Há algumas iniciativas isoladas em estados como Amazonas e Distrito Federal. Tocado pela Defensoria Pública do AM, o projeto Órfãos do Feminicídio orienta as famílias a chegar aos serviços necessários, como à requisição de pensão e auxílio-reclusão, no caso de o pai estar preso e ter contribuído para o INSS, ou ao atendimento psicológico ou psiquiátrico no SUS.
Um estudo do Ministério Público de São Paulo revelou, a partir da análise de 364 denúncias, a cada quatro feminicídios, um foi cometido na frente de alguém da família ou de terceiros. Dessas testemunhas, 57% eram os filhos da mulher. Um quarto deles também foi atacado no momento do assassinato. Por aqui, no período entre 2017 e 2018, enquanto os homicídios caíram 13%, os feminicídios aumentaram 4%. Incorporado em 2015 à legislação brasileira, o crime de feminicídio tem pena que varia de 12 a 30 anos, enquanto para o homicídio simples ela é de seis a 20 anos. A punição aumenta se a morte for praticada em determinadas circunstâncias, como durante a gestação, nos três meses após o parto ou na presença de filhos ou pais da vítima.
DE BOLSOS CHEIOS
Sabemos que o ano de 2018 foi ruim para as políticas públicas voltadas para mulheres que, na época, sofreram redução de 82%. Mas em 2019, no governo Bolsonaro, o recurso foi recomposto, chegando a quase R$ 300 milhões; e em 2020 a verba autorizada para o ministério de Damares Alves chega a R$ 390 milhões. Parece estranho, né? O artigo de Carmela Zigone, assessora política do Inesc, explica o que está acontecendo.
No ano passado, apesar do montante alto, a execução foi baixíssima: menos de 10%. Para este ano, dos quase R$ 400 milhões da Pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, R$ 96 mi estão alocados, em tese, especificamente para as mulheres. Mas o governo criou um novo programa que, na verdade, é um guarda-chuva para várias políticas destinadas a mulheres, idosos e pessoas com deficiência. E um dos objetivos é “ampliar o acesso e o alcance das políticas de direitos, com foco no fortalecimento da família, por meio da melhoria da qualidade dos serviços de promoção e proteção da vida, desde a concepção, da mulher, da família e dos direitos humanos para todos”. Com palavras-chave problemáticas, para dizer o mínimo.
“O recado é bastante claro em relação ao tipo de política para as mulheres que será colocado em curso até 2022. Ao retirar a violência do documento que planeja a política pública para as mulheres, focando somente na família, o governo esconde o fato comprovado de que a violência doméstica é sofrida por milhares de mulheres e meninas dentro de suas próprias casas, na maioria dos casos pelos próprios maridos e parentes”, escreve a autora.