Há quanto tempo estamos remoendo essa história?
O que começou com um abraço numa apenada trans, dentro de uma matéria sensível sobre as mulheres trans dentro do sistema carcerário brasileiro desaguou num monte de chorume, transfobia, justiçamento, arrependimento, exposição de dores e feridas e, na nossa opinião, o pior de tudo, os ratos que se aproveitam das tragédias alheias para ganhar audiência, e que nunca se envergonharam disso.
Mais de uma semana de uma caçada alucinada para buscar qual o crime daquela mulher trans que recebeu um abraço de um médico. Chegamos então, ao crime hediondo e só para deixar claro, não estamos fazendo qualquer defesa de Suzy. Ela cometeu um crime, está presa, pagando na justiça, dentro de um estado democrático de direito, porque é assim que deve funcionar a justiça: aplicar uma pena para quem comete um crime. Se a prisão ainda é pouco, se ela deveria ser trucidada em praça pública, pendurada de cabeça pra baixo e açoitada até a morte, ser desmembrada e seus restos serem jogados para os cachorros comerem, já é outra história… Até essa data, vivemos dentro de uma civilização, e não da barbárie (sim, estou sendo otimista).
O fato é que absolutamente ninguém teria tentado descobrir o passado de Suzy se: ela não fosse uma mulher negra, pobre e trans, e principalmente, se a massa não tivesse ovacionado o Dr. Draúzio como o próximo presidente da República. Um médico que atua há mais de 50 anos com populações excluídas e marginalizadas, que cumpre seu juramento de cuidar da vida, que tratou presos com AIDS, tuberculose numa época em que eles eram jogados na vala comum da morte do Carandiru… Esse homem, que em momento algum da sua história afirmou que seria candidato a qualquer coisa, teve seu nome, sua profissão e sua história pisados e maltratados porque se sensibilizou com uma mulher trans, negra e pobre, que não recebia visitas há 8 anos…
O “crime” de Dr. Draúzio foi ter se mostrado humano. No vídeo abaixo, publicado nas redes sociais, ele se desculpa. Não precisava. Mas nós sim, nos desculpamos com as leitoras e principalmente, com os pais do menino. Não nos cabe imaginar a dor e a revolta dessa família e só nos resta lamentar.
Também nos sensibilizamos com a solidão de Suzy. Naquela cena, assim como fez o Dr. Draúzio, sentimos a necessidade de acolher aquela figura tão magra e sozinha. Mas não devemos nos desculpar por termos sentimentos de solidariedade e empatia. Ainda queremos viver em civilização, não estamos prontas para a barbárie.
Já algumas pessoas, sim.
Sikeira Jr., apresentador conhecido por respeitar o valor da vida humana (contém ironia), surpreendeu um total de zero pessoas a explorar o caso à sua maneira. Se você, leitora amiga, leitor amigo, acredita que ele sinta qualquer empatia pelos pais da criança assassinada por Suzy, tenho uma má notícia para dar: ele não tem. Sikeira só seguiu o roteiro que ele mesmo escreveu sobre o projeto de sociedade ele deseja.
Não existe empatia ali, só a necessidade de ganhar audiência.
E se você nos perguntar se essa também não era a intenção de Dr. Daúzio, respondemos com toda tranquilidade que sim. Com a diferença abissal de que o elemento dramático daquele abraço fechou uma matéria que falava sobre preconceitos, violências e abandono, feita com sensibilidade por um profissional que não precisaria mais dar explicações sobre sua trajetória.
Drauzio vem conversar diretamente com as pessoas que o acompanham – seja na TV ou nas redes sociais -, sobre sua participação na matéria do Fantástico veiculada no dia 01 de março. pic.twitter.com/jai00egpkg— Portal Drauzio Varella (@drauziovarella) March 10, 2020