No Brasil, conhecemos o primeiro caso de Covid-19 confirmado no país e o nome de Jaqueline Goes de Jesus praticamente ao mesmo tempo. Isso porque a biomédica soteropolitana de 30 anos coordenou a equipe que sequenciou o genoma do vírus em 48 horas, tempo recorde em relação a outros países. A precisão e a agilidade foram essenciais para o estudo ganhar aplausos da comunidade científica – e além. Mas o fato de ter sido liderado por uma mulher negra e nordestina fez com que as luzes dos holofotes ficassem ainda mais fortes. Jaqueline foi manchete em vários jornais, destaque no Fantástico, viu seus seguidores no Instagram se multiplicarem e até ganhou cartum do Mauricio de Sousa, desenhada ao lado da professora Ester Sabino.
As duas dividem a coordenação do projeto Cadde (Centro de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus), uma parceria do Brasil com o Reino Unido, e que aqui foi desenvolvido no Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo. “Já trabalho há um certo tempo com estudos de vírus em grandes surtos, como dengue, chikungunya, zika e febre amarela. Mas essa repercussão toda foi uma surpresa enorme. Fiquei feliz pelo fato de as pessoas, principalmente mulheres negras e nordestinos, se sentirem representados”, conta, em uma preciosa brecha na agenda para conversar com Marie Claire.
O estudo desenvolvido pela equipe de Jaqueline tem uma razão muito nobre para ter atingido a popularidade que atingiu: a identificação precoce é um dos caminhos mais eficientes para direcionar as ações que ajudam a conter surtos de contágio, para reconhecer os focos de transmissão e para que os órgão públicos tomem as medidas de precaução. “O genoma de qualquer organismo é como se fosse um molde. Nele constam as informações que vão determinar a estrutura e a função daquele organismo, incluindo suas características físicas. Quanto mais rápido conhecemos os genomas virais, em particular, mais rápido entendemos como esses vírus estão circulando na sociedade. Pois cada vez que o vírus passa de uma pessoa para outra, ou de um local para outro, ele ganha marcas daquela transmissão que podem ser rastreadas. Isso contribui muito para o estudo de epidemias como a que estamos vivendo”, explica.
Ela ainda lembra que o fato de o sequenciamento ter sido feito em 48 horas foi importante, mas não uma novidade para a equipe brasileira. “A mídia e as pessoas focaram muito na agilidade, mas, na realidade, fazemos esse sequenciamento na nossa rotina de pesquisa em menos tempo, entre 12 e 24 horas. Assim, ter feito em 48 não foi algo tão inusitado para nossa equipe. Acho que o fato de outros países não conseguirem realizar em um tempo tão curto é que favoreceu esse destaque”, esclarece.
Jaqueline Goes de Jesus – “Ver jovens negros, nordestinos, ocupando espaços nas universidades me deixa muito esperançosa em relação ao futuro. Teremos cada vez mais representantes exercendo cargos e obtendo resultados importantíssimos para a sociedade” (Foto: Foto: Eliezer Santana Jr)
Jaqueline, que chegou a cogitar estudar medicina, se identificou muito mais com a biomedicina assim que conheceu melhor a função. Ela conta que seu interesse era encontrar a cura de doenças, e que seguir o caminho da pesquisa foi natural. Resultado? Ela é graduada em biomedicina pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, mestre em biotecnologia em saúde e medicina investigativa pelo Instituto de Pesquisas Gonçalo Moniz – Fundação Oswaldo Cruz (IGM-Fiocruz) e doutora em patologia humana e experimental pela Universidade Federal da Bahia em ampla associação com o IGM-Fiocruz. Hoje é pós-doutoranda na Faculdade de Medicina da USP, mora em São Paulo desde 2019, e é bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
O acúmulo de títulos de ensino superior é de família. Seus pais são formados pela Universidade Federal da Bahia (UFBA): a mãe é técnica de enfermagem e pedagoga. O pai é engenheiro civil, profissão que o irmão caçula também decidiu seguir – ele atualmente cursa uma segunda graduação, em matemática. Não à toa, Jaqueline é grande entusiasta da academia, e acredita que o acesso democrático à educação pode ajudar a corrigir diferenças sociais fundamentais. “Vivemos uma mudança significativa no cenário brasileiro no governo anterior. Os programas sociais, como Prouni e o sistema de cotas, permitiram o acesso de uma parte da população que jamais teria tido oportunidade de ingressar numa faculdade. Estruturalmente, sabemos que a maioria da população pobre do nosso país é negra. É uma dívida histórica, que perpassou séculos. Ver jovens negros, nordestinos, ocupando espaços nas universidades me deixa muito esperançosa em relação ao futuro. Sem dúvidas teremos cada vez mais representantes exercendo cargos e também obtendo resultados importantíssimos para a sociedade.”
Atualmente, Jaqueline e sua equipe seguem sequenciando o genoma de mais amostras, para acompanhar o desenvolvimento do vírus – mas os resultados ainda são confidenciais. Também fez parte, em meados de março, da Comissão Externa destinada a acompanhar as Ações Preventivas ao Coronavírus no Brasil, uma audiência pública da Câmara Federal dos Deputados para propor estratégias de contingência da disseminação do vírus.
do portal Geledés