O sociólogo João Paulo Cavalcanti, 32, tinha 23 anos quando foi agredido por um namorado que o trancou em sua casa durante um rompante de ciúme. “Já vínhamos tendo brigas motivadas por ciúme e possessividade da parte dele. Até que um dia ele explodiu e me deu um soco. Na hora, achei que ele fosse me matar porque estava muito alterado. Fingi um ataque de asma, ele destrancou a porta, e eu saí correndo”, conta.
“Mas só consegui falar sobre o que aconteceu depois de sete anos e após fazer terapia. Tinha vergonha de falar que era gay, então nem me passava pela cabeça denunciar em uma delegacia. Também tinha vergonha por ser homem e ter apanhado. Achava que ia fazer um boletim de ocorrência e ouvir algo como ‘o viadinho que apanhou'”, diz.
Paula* também vivia um relacionamento estável com sua companheira. Dividiam o mesmo apartamento até que ela começou a sofrer abusos psicológicos e finalmente, a violência física. “Ela rasgou minhas roupas e me jogou na rua, no meio da madrugada. A gente sempre acha que isso só acontece com casais héteros, é muito humilhante”, afirma Paula, que mudou de cidade e se livrou dos abusos.
Ainda que o termo violência doméstica seja usualmente relacionado a casais heterossexuais, a agressão sofrida por Cavalcanti e Paula também podem ser consideradas violência doméstica, uma vez que havia relacionamento íntimo entre os dois. Poderia ser, inclusive, enquadrada na Lei Maria da Penha, como já ocorreu em algumas decisões de tribunais brasileiros, mesmo que o texto da lei se refira à vítima como sendo uma mulher.
Na decisão mais recente, de agosto de 2019, um juiz da 4ª Vara de Família de Belo Horizonte concedeu uma medida protetiva a uma vítima de agressão, impedindo que o ex-companheiro se aproximasse dele. “A lei fala de relações íntimas de afeto, por isso, inclui as homoafetivas. Por mais que a gente costume se referir à violência doméstica entre casais heterossexuais, ela também existe entre os homossexuais homens. E já existe essa jurisprudência da Lei Maria da Penha ser acionada para a vítima pedir uma medida protetiva, embora sejam poucos os casos”, explica a advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente nacional do IBDFAM (Instituto Brasileiro do Direito de Família) e autora de livros sobre direito homoafetivo.
Mais comum do que se imagina
Coordenador do Núcleo de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública de São Paulo, Vinicius Silva afirma que esse tipo de situação “acontece com muito mais frequência do que as pessoas imaginam”. No núcleo, diz receber vários desses casos, mas não consegue precisá-los por estar trabalhando remotamente durante a pandemia.
“Muitos vêm pelo Disque 100 [serviço do governo federal de denúncias de violações de direitos humanos] e por e-mail. Antes do isolamento, as vítimas também nos procuravam presencialmente”, conta.
“As pessoas não pensam que pessoas LGBTs conseguem ser violentas com seus parceiros porque já é um grupo muito estigmatizado. Mas é uma realidade bastante comum por causa da própria sociedade em que nós crescemos, a gente acaba seguindo padrões de masculinidade, valores como o de posse do parceiro, que se reproduzem entre casais homoafetivos”, diz.
Vinicius acredita que, apesar da gravidade de uma agressão desse tipo e do fato de poder ser considerada violência doméstica, os gays que passam por situações como essa devem procurar outros mecanismos legais em vez da Lei Maria da Penha. “O ideal é continuar usando essa lei para prestigiar a luta das mulheres, para evitar que suas reivindicações sejam apagadas”, opina.
“Ainda assim, a vítima não ficaria desamparada: há leis gerais no Código de Processo Penal que dão conta da situação e podem exigir, inclusive, o afastamento do agressor.”
LGBTs têm diculdade para reconhecer a agressão vinda de seus pares
A advogada Luanda Pires, integrante da Comissão de Diversidade Sexual da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo) e especialista em direito homoafetivo e de gênero, afirma que, muitas vezes, as próprias vítimas têm dificuldade de se reconhecer dentro de uma situação de violência doméstica.
“Os casais que vivem essa situação dizem que demoram para admitir porque não esperam que uma pessoa que também sofreu homofobia, que já foi vítima de agressões ou ofensas, possa praticar esses atos com um companheiro ou companheira”, explica.
Ela destaca que, entre lésbicas, a proteção da lei é mais explícita para essas situações, mas que homens gays também estão amparados legalmente. “É importante que as pessoas entendam que todos estão sujeitos, independentemente de orientação sexual, a passar por isso. Inclusive, tanto como vítima quanto como agressor ou agressora, porque, mesmo que tenha entendimento a respeito de direitos humanos, raça, gênero, a gente vem dessa construção social machista e acredita que, nas relações, sempre há alguém com mais força ou que pode se sentir ‘dono’ da outra pessoa”, diz Luanda.
“E ressalto que é importante observar o comportamento do parceiro ou da parceira desde as pequenas agressões de um relacionamento abusivo”, alerta. “Se a pessoa fala coisas que te ofendem, começou a te xingar ou deixar mal, já é o caso de procurar ajuda: pesquise na internet, busque uma rede de apoio ou coletivos ligados à causa LGBTQIA+. Assim, essa violência é reconhecida de forma mais rápida e a gente pode evitar que chegue a uma agressão física.”
da redação, com Universa