Com ajuda de paraibano, Justiça brasileira reconhece a culpa do Estado na morte de Zuzu Angel

By 6 de julho de 2020outubro 14th, 2020Justiça

Com a ajuda do advogado paraibano Marcos Pires, única testemunha do acidente de vitimou a estilista Zuzu Angel, a A União terá que pagar R$ 480 mil de indenização para as filhas da estilista, Hildegard e Ana Cristina. A matéria é do site Uol.

Quando o telefone tocou na madrugada de 14 de abril de 1976, a jornalista carioca Hildegard Angel, então com 26 anos, não teve dúvida: algo tinha acontecido com sua mãe. Do outro lado da linha, uma amiga de Zuzu Angel (1921-1976) confirmava a suspeita. A estilista tinha sofrido um acidente de carro por volta das 3:30, ao voltar para casa, na Barra da Tijuca, de um jantar na casa de amigos. O Karmann-Ghia que ela dirigia capotou na saída do túnel Dois Irmãos — que liga a Gávea a São Conrado — e caiu de uma altura de dez metros. “A primeira coisa em que pensei foi: Mataram mamãe!”, recorda Hildegard, hoje com 70, em conversa com o TAB. “Custei a acreditar naquela crueldade. Não queria
aceitar que, depois de perder meu irmão, Stuart, e minha cunhada, Sônia, minha mãe também tinha sido assassinada. Era a terceira vez que aquela desgraça recaía sobre as nossas cabeças.”

Desde então, Hildegard Angel trava uma “batalha sem trégua” para provar que, ao
contrário do que insistem em dizer alguns veículos de comunicação e, até mesmo, alguns
livros de história, sua mãe não morreu de um “suposto acidente de carro” porque ingeriu
álcool, cochilou ao volante ou sofreu um infarto. A Justiça brasileira acaba de reconhecer
que Zuzu Angel foi assassinada por agentes da ditadura militar. Por isso, a União terá que
pagar uma indenização de R$ 240 mil para cada uma das filhas da estilista, Hildegard e
Ana Cristina.

A ação foi proposta pelas duas, através do advogado Ivan Nunes Ferreira, e não cabe
recurso. “Zuzu já foi incluída no panteão dos heróis e das heroínas da pátria, teve a
certidão de óbito retificada e recebeu todas as homenagens possíveis e imaginárias.
Mesmo assim, ainda faltava o carimbo da Justiça brasileira. De hoje em diante, quem
colocar em dúvida o heroísmo dela corre o risco de ser contestado judicialmente”, avisa
Hildegard.

Considerada a primeira estilista brasileira, Zuzu Angel era o nome artístico de Zuleika
Angel Jones. Mineira de Curvelo, município localizado a 168 quilômetros de Belo
Horizonte, Zuleika de Souza Netto se casou, em 1943, com o norte-americano Norman
Angel Jones. Separada do marido em 1960, lutou, sozinha, para sustentar a casa e criar
os três filhos: Stuart, Hildegard e Ana Cristina. Como estilista da alta-costura, chegou a ter
loja em Ipanema e Nova York. Suas criações, repletas de brasilidade, alcançaram fama
internacional e vestiram estrelas de Hollywood, como Liza Minelli, Kim Novak e Joan
Crawford.

A vida de Zuzu Angel, porém, virou pelo avesso na manhã de 14 de maio de 1971. Seu
primogênito, Stuart Edgar Angel Jones (1946-1971), foi capturado em Vila Isabel, na Zona
Norte do Rio, por agentes do CISA (Centro de Informações de Segurança da
Aeronáutica), e levado para a Base Aérea do Galeão, na Ilha do Governador. Na época,
Stuart tinha 26 anos, era bicampeão carioca de remo pelo Flamengo e cursava Economia
na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). O rapaz também fazia parte do
Movimento Revolucionário 8 de Outubro, conhecido como MR-8 — a mesma organização
que, em 4 de setembro de 1969, sequestrou o embaixador norte-americano Charles
Elbrick (1908-1983), no Rio.

O objetivo do interrogatório de Stuart era um só: descobrir o paradeiro do capitão Carlos
Lamarca (1937-1971), um dos principais líderes da luta armada contra o regime militar.
Segundo o relato de Alex Polari, um ex-companheiro de militância e carceragem, Stuart
foi brutalmente torturado. “Consegui, com muito esforço, olhar pela janela que ficava a uns
dois metros do chão e me deparei com algo difícil de esquecer: junto a um sem-número
de torturadores, oficiais e soldados, Stuart, já com a pele semi-esfolada, era arrastado de
um lado para o outro do pátio, amarrado a uma viatura e, de quando em quando,
obrigado, com a boca quase colada a uma descarga aberta, a aspirar gases tóxicos”,
relata Polari, com 20 anos, em carta datada de 23 de maio de 1972. Detalhe: o codinome
do CISA era “Paraíso”

Poucos dias depois, a carta escrita e assinada por Polari chegava às mãos de Zuzu Angel. Nela, o preso político descrevia as últimas palavras de Stuart. Tossindo muito, balbuciou: “Água”, “Vou morrer” e “Estou ficando louco”. Como resposta, ouviu de um dos torturadores: “Deixe de frescura, Paulo, você não vai morrer ainda não…”, debochou, chamando Stuart pelo seu codinome no MR-8. Em 2013, durante depoimento à Comissão da Verdade, Polari confirmou cada palavra do que dissera. Preso de 1971 a 1980, ele vive hoje, aos 69 anos, na Amazônia, onde se tornou líder de uma comunidade de Santo Daime. Procurado pela reportagem do TAB, preferiu não dar entrevista.

Zuzu alertou amigos

Desde que Stuart foi capturado, Zuzu não teve mais um minuto de paz. Em setembro de
1971, realizou um desfile-protesto na casa do cônsul do Brasil em Nova York, Lauro
Soutello Alves. Na passarela, as modelos usavam figurinos bordados com tanques, fuzis e
canhões. Já Zuzu vestia um vestido preto em sinal de luto, e ostentava um cinturão com
crucifixos e um colar com a imagem de um anjo.

Em 30 de novembro de 1973, Zuzu sofreu outro duro golpe: Sônia de Moraes Angel
(1946-1973), viúva de Stuart e militante do movimento ALN (Ação Libertadora Nacional),
foi presa, torturada e morta por agentes do DOI-CODI (Destacamento de Operações de
Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), órgão de repressão da ditadura,
em São Paulo. Seus restos mortais só foram identificados em 1991, quase vinte anos
depois.

A história da estilista ganhou um filme em 2006, protagonizado por Patrícia Pillar como
Zuzu Angel e Daniel de Oliveira no papel de Stuart. “É comum pais que oferecem a
Há qualquer coisa de tragédia grega, de Antígona, na vida de Zuzu. Ela não se fazia de
coitada, nem vivia chorando pelos cantos. Era uma guerreira própria vida pela vida de seus filhos. Zuzu Angel foi além: ela deu sua vida por um filho que já estava morto. Deu sua vida pela memória de Stuart. A história dessa mulher continua atualíssima”, diz Rezende ao TAB.

Como Norman, o pai de Stuart, era cidadão americano, Zuzu resolveu denunciar o sumiço
do filho e reivindicar o direito de sepultá-lo para o senador democrata Edward “Ted”
Kennedy (1932-2009) e para o secretário de Estado, Henry Kissinger. No caso de Kissinger, hoje com 97 anos, Zuzu chegou a entregar um dossiê sobre o caso, quando ele se hospedou no Hotel Sheraton, no Rio, em fevereiro de 1976.

Sua ousadia despertou a ira dos militares. Logo, ela passou a ser investigada, perseguida
e ameaçada. “A morte de Zuzu se reveste de particular significado. Ela não era militante
política nem estava envolvida em qualquer ação contra o regime ditatorial. Foi
assassinada por procurar seu filho, preso e desaparecido nos porões da repressão. Zuzu
Angel queria encontrar seu filho, e a ditadura a matou apenas por isso. Nada é mais
ilustrativo do horror de uma ditadura que a história de Zuzu Angel”, revela ao TAB o
advogado e professor Pedro Dallari, ex-presidente da CNV (Comissão Nacional da Verdade).

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