Falamos aqui reiteradas vezes sobre a importância da denúncia em casos de violência doméstica. Sabemos também como essa situação é difícil, mas ela pode se tornar ainda mais complicada se o agressor for um policial. Imagine chamar a polícia e o amigo do seu marido chegar pra atender?
A técnica de enfermagem Juliana* tem cinco boletins de ocorrência registrados contra o ex-marido: um por disparo de arma de fogo e quatro por violência doméstica. O último desse tipo ela levou adiante quando um dos filhos do casal foi mordido pelo pai durante uma das visitas dele –embora ainda casados no papel, eles estão em separação de corpos, em casas diferentes.
“Lembro que, quando eu fui registrar esse boletim de ocorrência, o policial na Corregedoria olhou bem para mim e tentou me demover: ‘Não seria melhor a senhora fazer um tratamento? Porque ele [o ex-marido] não tem cara de que é uma pessoa violenta, mas de que é um moço bom. Pense bem: se ele perder o emprego, não vai ser pior?’. Ali, eu me senti profundamente desprotegida.”
A jovem fez o registro, mas, aparentemente, de pouco adiantou. Alguns meses depois, há um ano, o ex a agrediu novamente, já na casa onde ela mora com as crianças de seis e oito anos. “Não fiz boletim de ocorrência dessa vez, nem pedi medida protetiva, como já
tinha feito também outras vezes, mas, mesmo assim, ele foi atrás de mim. Cheguei à conclusão de que, se ele quiser me matar, não vai ser uma medida, nem um boletim de ocorrência que vão impedi-lo. E como eu vou pedir ajuda à polícia contra um deles?”
O ex-marido da técnica de enfermagem é policial militar em São Paulo. Atua no setor de inteligência da corporação. No começo da pandemia, em março, ela conta, ele ficou uma semana dormindo na casa dela e dos filhos. “Pedi para ir embora, mas ele me disse que
ficaria porque o aluguel saía do bolso dele. Foi uma semana inteira em que eu não consegui dormir, de medo.”
Arma do trabalho em casa
O caso da técnica de enfermagem ilustra um tipo de violência doméstica do qual se conhece, não raro, consequências mais drásticas e irreversíveis como os feminicídios — sobre isso, vale lembrar que, com frequência, o policial fora de serviço tem a arma sob seus cuidados.
Embora os casos de violência doméstica em geral tenham disparado no Brasil e em outros países da América Latina, durante a atual pandemia de covid-19, situações envolvendo policiais também acendem um alerta a quem acompanha situações do tipo mais de perto.
Os relatos de violência doméstica sofrida do parceiro policial antes mesmo das tensões e incertezas trazidas pela pandemia marcaram a trajetória pessoal e profissional da cabo Teresa *, que ficou 13 anos casada com um PM.
Ela conta ter sofrido episódios de violência física e psicológica do agora ex-marido, de quem se separou recentemente e com quem teve dois filhos, hoje com 13 e 6 anos.
“Desde o meu primeiro filho, eu tinha indícios de que meu então marido me traía, mas não consegui provar. Não tive condições de romper o relacionamento com ele, desse jeito, ainda mais estando grávida”, afirma.
Quando começou a trabalhar no período noturno, o marido passou a expressar fortes crises de ciúme que culminavam, de início, com uma espécie de perseguição dele à rotina de trabalho dela.
“Se ele me ligava, eu tinha que atender. Mesmo eu dizendo que, ainda mais por ser policial, ele deveria compreender que não podia incomodar meu trabalho daquele jeito. Então, ele começou a ir atrás de mim: aparecia de surpresa, checava minhas abordagens, onde eu estava, seguia a viatura em que eu estava… Um horror.”
Paralelamente, explica Teresa, os indícios de infidelidade por parte do marido começavam a se materializar. Em uma das discussões que tiveram a respeito das traições, ela propôs o término do casamento e foi agredida na frente dos dois filhos, ainda crianças de 2 e 9 anos.
“Nesse dia, ele me arrastou pelo corredor, apertou meu pescoço. Meu filho mais novo chorava, e o mais velho pedia que ele me largasse. Meu marido foi então até o quarto atrás da arma, que ele guardava em uma das gavetas da cômoda. Mas estava tão cego de ódio, dizendo que ia me matar que não achou a arma entre os tecidos. Gritei por socorro, mas meus vizinhos [ela morava em um apartamento de quatro imóveis por andar] não me ajudaram”, diz.
Medo de vingança ou vergonha
Quando a cabo teve provas das traições, e resolveu confrontar o marido, as agressões foram maiores. “Nesse dia, que foi quando decidi por me separar, eu fiquei com hematomas pelo corpo, minha mão lesionou. Até hoje tenho algumas cicatrizes. Meu filho ficou tão nervoso que teve um sangramento no nariz. E até hoje ele se lembra disso. Já o mais novo ouviu o pai dele me ameaçando e perguntou: ‘Mamãe, se você morrer, eu também morrerei?’ Doeu demais ouvir isso.”
A cabo fez terapia pela PM e pagou terapeuta particular ao filho mais velho. Ao caçula, diz, não teve condições de pagar acesso ao mesmo serviço uma vez que havia acabado de se separar.
Questionada sobre como se sente hoje, a cabo afirma ter “admiração pela coragem” de mulheres que, como ela, denunciaram os episódios de violência contra uma autoridade que, em geral, deveria combater e reprimir essa mesma violência.
“Muitas mulheres passam por isso que eu passei, mas pensam que não têm condições de denunciar porque dependem financeiramente do agressor, ou não têm ninguém próximo que possa ajudá-las. Eu tenho o meu salário e pude sair de casa. E meu ex paga pensão aos filhos porque foi obrigado pela Justiça Militar”, explica.
Acionado pela policial também na Justiça comum, o ex-marido dela segue no policiamento de rua. “Vivo sob ameaça constante”
da redação, com informações do Universa