Um feto sem condições de viver fora do útero, uma mulher que corre risco de morte, o calvário para conseguir autorização para interromper a gravidez e um padre que entra na justiça para impedir o procedimento numa mulher que ele nunca viu na vida. Uma história sem final feliz, mas que garantiu, ao menos, que a justiça fosse feita, 12 anos depois.
Em 2005, Tatielle estava grávida de 5 meses. Moradora de Morrinhos, a 130 km de Goiânia, no estado de Goiás, ela já sabia que teria uma filha e que ela se chamaria Giovana. Numa ultrassom de rotina, Tatielle viu se concretizar o maior pavor de 10 em cada 10 grávidas, sua filha tinha uma anomalia: síndrome de body stalk, doença rara que faz com que os órgãos do feto fiquem do lado de fora do corpo e torna a vida fora do útero inviável. Em resumo, Giovana não teria condições de viver fora do útero, e levar a gravidez adiante traria risco de vida para Tatielle.
A dor emocional já era insuportável, mas o fato é que Tatielle ainda sofreria outras violências tão profundas, que a acompanhariam por toda sua vida.
Tatielle e o marido, José Ricardo Dias, voltaram para casa e esperaram um mês para repetir o exame. Então, com a confirmação do diagnóstico, foram orientados a buscar a justiça e pedir autorização para a interrupção da gestação. “Eu tinha que fazer isso o mais rápido possível, porque era perigoso eu ir junto [morrer] também”, contou Tatielle em entrevista concedida em 2016 à pesquisadora Débora Diniz.
Orientada por uma advogada, ela passou por sete médicos diferentes, que repetiram o exame e emitiram laudos confirmando que o feto não teria como sobreviver e que a orientação médica era a interrupção da gestação. Naquele momento, Tatielle só tinha duas alternativas: interromper a gestação, ou levar a gestação adiante, correr risco de morte, e, na melhor das hipóteses ver sua filha morrer poucas horas depois de nascida.
Tatielle lembra que o processo de conseguir os laudos e pedir a autorização judicial foi um sofrimento. Lidando com a perda da filha, ela teve que ficar na Capital por 17 dias, sem recursos, indo e vindo do hospital. “Eu estava numa forma que custava até andar. Mas andava de ônibus, duas vezes por semana indo ao hospital, para conseguir ao menos tentar salvar a minha vida, já que a do feto não tinha condição”. Tudo isso também fez a família gastar mais recursos do que tinha.
Quase um mês depois, porém, a autorização chegou e tudo indicava que uma parte do seu sofrimento chegaria ao fim. Tatielle voltou sozinha para Goiânia, porque o marido precisava trabalhar, e foi internada. Os médicos deram a ela os medicamentos para a indução do parto e ela começou a ter dilatação.
Eis que, o que já era doloroso, sofrido e traumático, conseguiu ficar ainda pior. Os médicos entraram no quarto e informaram que o procedimento deveria ser interrompido. O padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, que não conhecia Tatielle entrou com uma ordem judicial preventiva ordenando que os médicos parassem o atendimento. “Eu já estava passando mal, com três ou seis centímetros de dilatação”, lembra Tatielle.
Isso foi num sábado e Tatielle ficou no hospital até a segunda-feira, quando foi enviada de volta para Morrinhos. Passou uma semana com dores, até que no fim de semana começou a sangrar. “Você podia pegar um balde, que era um sangue vivinho, vivinho assim. Passando mal mesmo. E eu ia ao hospital, mas o médico não podia pôr a mão, porque estava em ordem de justiça”, conta.
Ela foi mandada de volta para casa, onde ficou com dor e sangramento até que não aguentou mais. José Ricardo conta que não havia ambulância disponível no dia e teve que acionar a polícia para levar Tatielle ao hospital. “‘Não fala que foi a gente que pegou, porque com esse negócio de justiça vai sobrar ainda para a gente’ – foi o que o policial falou”, conta José Ricardo.
O médico ainda queria mandar Tatielle para Goiânia, no entanto, viu que o feto estava encaixado e que não daria tempo dela chegar na capital. Então fez o parto em Morrinhos mesmo e, como o previsto, o bebê sobreviveu por pouco mais de uma hora. “Eu acho que nasceu foi por Deus, porque por eles [os médicos], eu tinha morrido”.
“O ato de obrigar a mulher a manter a gestação, colocando-a em uma espécie de cárcere privado em seu próprio corpo, desprovida do mínimo essencial de autodeterminação e liberdade, assemelha-se à tortura ou a um sacrifício que não pode ser pedido a qualquer pessoa ou dela exigido”, escreveu o ministro Marco Aurélio, do STF, em seu voto na ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental), que passou a permitir a interrupção da gestação legalmente no Brasil em casos de anencefalia do feto – sete anos depois do caso de Tatielle.
A violência sofrida marcou a vida de Tatielle de várias formas. Além dos gastos que a família teve com todo o processo, as marcas psicológicas fizeram Tatielle enfrentar uma depressão. Até hoje, ela ainda tem dificuldade de falar sobre o que viveu. “Mexeu totalmente com a gente”.
Por causa de tudo isso, o casal decidiu entrar com uma ação contra o padre, em 2008, por danos morais. Mas o processo não foi simples.
Quatro anos mais tarde, os pedidos do casal foram julgados improcedentes pelo juiz da 13ª Vara Cível e Ambiental da Comarca de Goiânia, Otacílio de Mesquita Zago. Ele entendeu que não houve abuso por parte do padre ao recorrer à justiça para interromper o procedimento, que também tinha sido autorizado pela justiça.
Na época, o casal ainda foi condenado a pagar a custas processuais e honorários advocatícios do padre, no valor de R$ 1,2 mil. Ao recorrerem da decisão, mais uma derrota. O relator do caso, Kisleu Dias Maciel Filho, chegou a citar em sua decisão que Tatielle e o marido “sofreram durante dias as dores e angústias ao terem que aguardar o parto natural do feto que esperavam” e que “não há dúvidas de que a ciência não poderia salvar a vida do bebê dos autores, em razão da letalidade da Síndrome de Body Stalk”. No entanto, optou por negar o pedido em favor do padre que, “como cidadão”, poderia “utilizar-se dos meios legais ao seu alcance para ver tutelado o direito à vida”.
Como não havia mais possibilidade de recurso em primeira e segunda instâncias, a defesa do casal levou o caso, em 2013, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao STF.
Só em 2016, a justiça se posicionou a favor da família, após decisão da ministra do STJ Nancy Andrighi (única mulher a apreciar o caso em todo andamento do processo). A decisão reverteu todas as negativas anteriores e condenou o padre ao pagamento de indenização de R$ 60 mil a Tatielle e José Ricardo – com correção esse valor hoje está em R$ 398 mil. A decisão foi noticiada na época e o padre Lodi chegou a afirmar que não tinha bens para pagar a indenização.
Com base nessa decisão, o ministro do STF Dias Toffoli manteve a condenação, em última instância, encerrando o processo em agosto de 2020.
Foram 12 anos de processo em andamento na justiça até a sentença em trânsito e julgado (quando não há mais possibilidade de recurso por parte do réu), mas a saga de Tatielle está longe de acabar. Isso porque as advogadas do casal devem acompanhar agora o cumprimento da sentença, ou seja, o pagamento da indenização à família.
Esta fase inclui um prazo para o pagamento de forma voluntária e, se isso não acontecer, novos prazos para que a justiça indique bens do patrimônio do padre que possam ser utilizados para sanar a dívida. “O Código Civil determina um prazo de 5 anos para que a ação de cobrança seja ajuizada. O processo, todavia, não tem prazo para terminar”, explica a advogada Vitória Buzzi, da Anis. Procurado, o padre não quis comentar o caso.
Nesse meio tempo, Tatielle teve dois outros filhos, um que tem autismo e está com 10 anos e outro que está com quatro anos. Ela ainda sofre de um quadro grave de depressão.
A história de Tatielle, infelizmente, não é única. O próprio padre Lodi moveu outras ações judiciais parecidas contra outras mulheres. Uma delas foi em 2002, contra Gabriela de Oliveira Cordeiro, que estava grávida de um feto anencéfalo e já internada para interromper a gestação quando recebeu a notificação.
O caso de Gabriela foi levado ao STF, mas antes que fosse julgado ela deu à luz a Maria Vida, que morreu em sete minutos. O caso foi arquivado, mas motivou Débora Diniz e a Anis a entrar com a ADPF pedindo a descriminalização do aborto em casos como o dela. Em 2012, a sentença mudaria os rumos da tomada de decisão para mulheres como ela, e a interrupção da gravidez passou a ser permitida em casos de gestação de fetos anencéfalo.
da redação, com informações do portal AzMina