Bonecas pretas são uma verdadeira raridade nas linhas de produção de brinquedos e nas prateleiras de lojas infantis virtuais. A terceira edição do levantamento Cadê Nossa Boneca?, feito em agosto, aponta que apenas 6% das bonecas produzidas e 9% das ofertadas em lojas online são negras.
A pesquisa foi feita pela ONG Avante, da Bahia, que atua com direitos das crianças, com base nos sites de fabricantes e lojas de brinquedos. O levantamento identificou neste ano 1.093 modelos de bonecas em 14 sites de fabricantes de brinquedos associados à Abrinq (Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos). Entre elas, apenas 70 eram negras. Das empresas pesquisadas, seis sequer apontavam apontavam fabricar esse tipo de produto.
Em comparação à edição passada da pesquisa, feita em 2018, houve queda no percentual de bonecas negras produzidas: elas eram 7% do total há dois anos. Já entre as lojas online, o resultado apresentou alta: passou de 4% dos modelos colocados à venda em 2018 para 9% neste ano. Quando comparada com a população, a conta não fecha. De acordo o IBGE, 9,4% dos brasileiros se declaram pretos e 46,8%, pardos. Os negros, segundo a metodologia aplicada pelo instituto, são a soma de pretos e pardos —o que, em 2019, representou 56,2% da população nacional.
Com ações e campanhas afirmativas, o percentual da população que se autodeclara negra vem crescendo ao longo dos anos: em 2012, eram apenas 50,1%.
Apesar dos baixos índices de oferta de bonecas negras, o presidente da Abrinq, Synésio Batista da Costa, afirma que “não falta nenhum tipo, cor ou tamanho de bonecas e bonecos no Brasil”. “Fabricamos bonecas de todos os tipos, tamanhos e cores, não tratamos de gênero nem raça. As crianças negras gostam de bonecas loiras e negras e vice-versa, pois o imaginário é a alegria de brincar. Não se registram julgamentos políticos no imaginário infantil”, diz.
Mas para a psicóloga, consultora da Avante e idealizadora da campanha Cadê Nossa Boneca?, Ana Marcílio, é um erro tratar o tema como se a cor não fizesse diferença. Isso, diz ela, dificulta a identidade da criança com sua própria raça e pode reforçar um estereótipo social equivocado. “Quando a gente dá uma boneca preta a uma criança preta, a gente vê a felicidade, a identificação dela. Mas, se você for para a vitrine de um loja, vai ver bonecas louras. Claro que isso gera um problema de identificação. Não à toa hoje nosso estereótipo da geração é a mulher loura de cabelo esticado”, afirma.
Ana Marcílio alega ainda que indústria, comerciantes e consumidores apresentam argumentos diferentes para justificar o problema. “É um discurso muito desconexo: o consumidor diz não que compra porque as lojas não vendem, o comércio diz que não expõe porque não vende, e a indústria diz que não há demanda. Acho que não existe é uma prioridade para bonecas pretas. O que a gente está falando é de racismo. Essa é a única explicação que vejo para esse percentual tão baixo. O que a gente vê hoje são histórias de pais e mães que viveram a falta das bonecas negras e querem dá-las hoje aos filhos.”
Ainda segundo a idealizadora do projeto, o levantamento mostrou que a queda no percentual produzido pode ser explicada, em partes, pela redução no número de fabricantes nesses dois anos. “Houve uma diminuição muito grande dos associados que produzem bonecas. E, entre essas empresas que fecharam, uma que saiu era a que mais produzia bonecas pretas”, lamenta.
Além de poucas, ela diz que, muitas vezes, as bonecas negras acabam sendo mais caras e dificultam o acesso da população de mais baixa renda a esses brinquedos. “Bonecos de bebês, geralmente, têm o mesmo valor. Mas, quando são bonecas com corpo de mulher, há um diferencial: as bonecas pretas são, em regra, itens de colecionador. Ou seja, não é uma boneca branca e uma versão negra. Você inibe o acesso pelos dois lados [pela falta de oferta e, quando há, pela valor mais caro]”, diz.
Em meio à ausência de modelos negros no mercado tradicional, uma opção comum é buscar brinquedos artesanais. Foi isso que fez a artesã Carla Albertim, 27, de Salvador, neste ano. “Comprei duas bonecas pretas e um boneco preto para meus filhos e meu enteado e dei no Dia das Crianças”, conta. A filha de Carla, de um ano, ganhou sua primeira boneca produzida pelo projeto Amora, que fabrica bonecas negras artesanais na capital baiana. “Apesar de ela ter a pele mais clara, acho que é um processo de reconhecimento: não só de se reconhecer, mas de reconhecer o outro, de reconhecer o ambiente em que ela vive”, diz Carla.
“Ela vai olhar para aquela boneca, cuidar daquela boneca, brincar com aquela boneca. Isso é inclusão para uma criança de um ano.” A microempresária Geo Nunes, idealizadora da Amora Brinquedos Afirmativos, conta que foi a falta de bonecas pretas que a fez pensar em criar o negócio. “Tudo começou quando eu tentei comprar bonecas para serem doadas para crianças negras, em 2015, e achei apenas um modelo. Então decidi que eu mesma faria”, conta.
Hoje, ela atua com uma rede de produtoras que consegue atender até 250 pedidos por mês. “A produção das bonecas ainda é reduzida e feita de forma artesanal. O que percebo é que, infelizmente, ainda fica ao encargo de nós, pequenas empresas, produzir de forma não industrial e suprir esse mercado racista.”
com informações do portal Universa
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