Por lei, o direito à interrupção da gravidez na Itália está em vigor desde 1978. A prática é permitida, sem restrições, até a nona semana de gestação. No entanto, por ser um país de imensa maioria católica, e por conta das pressões dos grupos religiosos, as mulheres italianas não possuem o acesso totalmente garantido. Para aquelas que conseguem ter seu direito assegurado, ainda restam, além das próprias questões emocionais, o ataque sistemático e cruel desses mesmos grupos religiosos, que contam com uma rede que atua dentro do próprio sistema de saúde público.
Uma ala do Cemitério Flaminio, o maior da Itália, está repleto de cruzes brancas saindo da terra. A maioria carrega um pequeno retângulo preto, cada um com uma data e um nome de mulher. Trata-se da identificação das mulheres que interromperam a gravidez pelas vias legais, muitos deles sem o consentimento das próprias mulheres.
Na Itália, enterrar fetos não é tecnicamente ilegal, mas as mulheres têm direito à privacidade de acordo com a lei de 1978 que legalizou o procedimento no país.
Em entrevista ao The Lily, publicação do Washington Post, Francesca, uma professora de 36 anos, contou que quase desmaiou ao ver seu próprio nome e a data 23 de dezembro de 2019 entre os túmulos. “A dor que senti naquele momento despertou um trauma de um ano. E de repente chorei todas as lágrimas que tinha em meu corpo ”, disse ela.
Segundo a reportagem, o caso de Francesca é apenas um entre os milhares nos “campos dos anjos” da Itália, recantos de cemitérios dedicados ao sepultamento de fetos abortados, administrados por grupos católicos antiaborto.
Francesca foi movida pela curiosidade de ir ao cemitério depois de ler um post no Facebook no qual uma colega disse que se recusou a reivindicar seu tecido fetal abortado de um hospital em Roma. Sete meses depois, ela descobriu que os restos mortais foram levados por estranhos e enterrados sem seu consentimento. A postagem se tornou viral, com mais de 10 mil compartilhamentos. Outras mulheres disseram que a mesma coisa aconteceu com elas.
Elisa Ercoli, presidente da organização feminista Differenza Donna, com sede em Roma, conta que começou a receber dezenas de ligações de mulheres relatando episódios semelhantes.
“Estávamos cientes da existência desses cemitérios, mas nada como o que testemunhamos no Flaminio, onde nomes completos são expostos publicamente e a privacidade das mulheres violada”, afirmou.
No início de outubro, ela disse que sua organização ouviu 130 mulheres que exigiram que os promotores abrissem uma investigação sobre quem estava por trás dos enterros públicos. O grupo entrou com uma queixa legal, citando violações de dados pessoais sensíveis.
“Foi um ataque a todos nós, um episódio de violência institucional que nos fez perceber quantos obstáculos ainda tentamos superar no dia a dia, apesar da legalização do aborto na Itália em 1978”, disse Ercoli.
O resultado da investigação deve sair em novembro.
da redação, com Marie Claire