A audiência do caso Mariana Ferrer — que denunciou ter sido dopada e estuprada em dezembro de 2018 — escancarou o que muitos juristas dizem ser comum: o tratamento humilhante dado por integrantes do poder judiciário a mulheres que denunciam violências de gênero, principalmente o estupro.
Advogadas afirmam que é comum surgirem questionamentos e até decisões baseadas no comportamento da vítima. Além disso, afirmam que denúncias costumam ser desqualificadas a partir de possíveis atitudes que uma mulher deveria ter diante de uma suposta violação.
Esse é o caso de uma denúncia feita por uma adolescente de 17 anos, que registrou a ocorrência de estupro de vulnerável em agosto deste ano, em Osasco, na Grande São Paulo, alegando ter sido abusada por um colega, também menor de idade, enquanto estava bêbada.
No relato, a jovem alegou ser virgem, e as considerações do delegado responsável pelo caso, Jorge Batista Godoy, do 6º Distrito Policial de Osasco, se centraram nessa informação. Godoy alega, no relatório final do inquérito ao qual Universa teve acesso, que “caso tivesse ocorrido uma conduta infracional de ‘estupro’ com uma moça virgem sem qualquer experiência sexual, com muita certeza, ela de pronto teria saído do local e procurado ajuda de seus familiares e da polícia, até por que os fatos somente vieram à baila, meses depois, após comentários nas redes sociais”, diz.
O questionamento de Godoy vem do fato de que a jovem só denunciou o estupro dez meses depois após a data em que teria sido cometido. Segundo a lei, a prescrição para denúncia de estupro de vulnerável é de 20 anos, que passam a contar a partir do momento que a vítima completa 18 anos. Essa contagem mudou em 2012 — antes, o tempo de prazo começava a correr a partir do dia do crime. Mas a nova contagem só vale a partir do ano em que a regra foi estipulada. Ou seja, somente crimes cometidos depois de 2012 têm a prescrição de 20 anos após a vítima fazer 18. No estupro simples, não havendo outro crime envolvido, a vítima pode denunciar o estupro até 16 anos depois de sofrer a violência.
“O delegado também julgou a virgindade ou não da menina e excluiu tudo o que ela falou. E esse pensamento, que tem fundamento na cultura do estupro, desconsiderou as provas do inquérito”, diz a advogada da garota, Ana Paula Freitas. “O delegado também ignorou o que testemunhas disseram e prints de conversa em que o adolescente confessa ter transado com ela enquanto ela dormia”, pontua a advogada.
Godoy foi procurado pela reportagem, por telefone, mas segundo um atendente, não se encontrava no 6º Distrito Policial de Osasco, no momento das duas ligações feitas na terça-feira (10). Respondeu a um recado deixado com pedido de retorno, mas desligou e não atendeu mais. A Secretaria de Segurança Pública também foi procurada para falar sobre o caso. Afirmou, por meio de nota, que “todas circunstâncias relativas à ocorrência foram investigadas, sob segredo de Justiça, por meio de inquérito policial instaurado pelo 6º Distrito Policial de Osasco. O caso foi relatado encaminhado ao Poder Judiciário em outubro e, desde então, não retornou para cumprimento de cota”.
A reportagem questionou a secretaria sobre a evidência na qual o delegado se baseou para afirmar que uma mulher virgem teria esse comportamento, se havia um estudo científico ou pesquisa a respeito. A pergunta não foi respondida.
Isabel* denunciou o caso em agosto, após escrever nas redes sociais que havia sofrido um abuso por um colega do mesmo colégio em que estudava, em outubro de 2019, na casa dele. Amigos estavam reunidos para fazer um trabalho escolar e começaram a beber. Ela ficou bêbada, alega ter perdido a memória e ter sido estuprada.
A jovem diz, em seu depoimento, não se lembrar do ato. Mas uma amiga, que também prestou relato à polícia, lhe contou que flagrou o rapaz sobre a garota, com ambos nus da cintura para baixo, no quarto dele. Isabel também afirmou, no depoimento, que era virgem. A mesma amiga afirmou à polícia que, ao entrar no quarto do rapaz, o viu entre as pernas da vítima. Isabel lhe pediu que dissesse ao garoto “que ela não queria”. Ela reforçou o pedido da menina e saiu. Depois, deu banho na garota, que estava alcoolizada e havia vomitado.
O jovem, também de 17 anos, foi representado — por ser menor, não se pode dizer que foi denunciado — por estupro de vulnerável afirma que o ato foi consentido. A advogada da vítima diz que a garota tem sofrido crises de pânico desde que fez a denúncia e que ainda não sabe da conclusão do delegado, uma vez que o pai dela optou por não contar para preservá-la. “O delegado não viu crime e, agora, o caso está com o Ministério Público. Uma promotora irá decidir se faz ou não a denúncia do adolescente para a Justiça”, diz Ana Paula.
“A conclusão desse delegado é o que afasta as mulheres de denunciarem. É por esse tipo de julgamento que ela e outros milhares de mulheres não denunciam”, diz a advogada, sobre o fato de a garota só ter procurado as autoridades após o caso ser divulgado POR ELA MESMA? nas redes sociais. “Quando ela teve coragem de denunciar, aconteceu o que temia: ser julgada por ser vítima de violência sexual.”
O psiquiatra Thiago Dornella Apolinário, integrante do Ambulatório de Sexualidade Humana do Hospital das Clínicas da USP de Ribeirão Preto e especialista no atendimento de vítimas de estupro, afirma que não há qualquer evidência do ponto de vista médico e científico que embase essa certeza de que uma mulher virgem teria o comportamento descrito pelo delegado. “Clinicamente, o que vemos é o contrário: a maioria das vítimas não consegue fazer esse pedido de socorro imediatamente. Isso se deve a vários fatores, tanto de ordem psicológica, quanto de ordem social”, afirma Apolinário.
“Do ponto de vista psicológico, uma situação traumática, como é o estupro, vem com uma carga emocional muito elevada. Essa vítima tem que processar o que está acontecendo, e isso faz com que ela não consiga reagir imediatamente. Pode ser tomada pelo medo e congelar, ficar em estado de choque, que é uma situação muito recorrente”, explica. “Do ponto de vista social, ela não fala sobre o que passou imediatamente pelo constrangimento que é a exposição de ter sido vítima, pelo medo do julgamento. E há o medo também da retaliação, já que uma boa parte dos agressores é do círculo de convívio da vítima. Ela tem receio de sofrer represálias.”
Sobre a demora em denunciar, Apolinário afirma ser a característica mais comum nos casos de estupro. “As pacientes que atendo, no geral, só procuram ajuda quando há uma consequência grave, como uma depressão. Dizem que tentam seguir em frente e lidar com o que viveram sozinhas, para não ter nenhum julgamento. Mas, aí, vão esbarrando nas repercussões que aparecem mais adiante.”
Ele também afirma que vê sentido na demora da vítima para denunciar porque, na maioria dos casos, ela sabe que alguma pessoa que a escuta vai responsabilizá-la por ter sofrido um estupro. “É a expressão do machismo dentro de uma cultura que não entende o que é a violência sexual e vai dizer que se a vítima não queria, deveria ter reagido ou se movido.”
matéria especial do portal Universa