O feminicídio é um crime de ódio. E como todo crime de ódio, tende a deixar uma “marca” que vai além do assassinato. Quando uma mulher é vítima de feminicídio, mais de um terço dos ferimentos (37,8%) está concentrado no rosto e no pescoço. Além de perder a vida, a vítima tem a face desfigurada. Essa é uma das conclusões de um levantamento feita por um perito gaúcho com base em respostas de outros 67 profissionais de perícia criminal de 20 Estados.
A análise do modus operandi dos autores de feminicídios sob o ponto vista da perícia criminal foi o mote da pesquisa de Lucas Ferreira Lima. Servidor do Instituto-Geral de Perícias (IGP) em Capão da Canoa há três anos, Lucas realizou o estudo para a conclusão da pós-graduação em Gestão de Investigação Criminal da Academia de Polícia do Rio Grande do Sul (Acadepol).
Intrigado pelas características dos feminicídios que atendia, Lima – que, assim como outros servidores do IGP, tem o papel de materializar a cena do crime e produzir a prova técnica que poderá condenar ou absolver o suspeito do crime – se propôs a investigar as similaridades desse tipo de ocorrência com base no relato de colegas de outras regiões do país. Nas respostas do questionário enviado por Lima, foram levados em conta assassinatos de mulheres por questão de gênero que aconteceram no primeiro semestre de 2020.
“A ideia era entender mais do feminicídio na visão dos peritos, os profissionais que vão até a cena do crime, tentam materializar o que aconteceu e, muitas vezes, são a última voz da vítima. O laudo tem a missão de detalhar tudo que aconteceu naquele momento. Esses casos se diferenciam dos homicídios comuns. Queria ter certeza que havia similaridade no modo de agir dos agressores” diz.Todas as hipóteses do pesquisador foram confirmadas na conclusão do estudo. Na rotina de trabalho de Lima, o foco do agressor no rosto da vítima sempre lhe chamou atenção: 90% dos casos de feminicídio que ele já atendeu a face da vítima estava ferida.
“Feminicídio é um crime de ódio e o rosto é sempre o primeiro a ser atingido. É um crime contra a mulher, contra o gênero, e o rosto é a identificação da mulher. É uma das partes mais femininas do corpo. Além da morte, é para desfigurar e desqualificar a mulher. Não basta matar”, considera a orientadora de Lima na pesquisa, a delegada Débora Dias, titular da Delegacia da Mulher de Santa Maria por 18 anos.
O estudo também demonstra que em 76,1% das mortes, o instrumento do crime foi um objeto cortante, uma arma branca. A arma de fogo foi usada em 49,2% das ocorrências. Outro detalhe identificado no levantamento é que 61,2% dos agressores usam mais de uma forma de agredir a vítima, como golpes físicos (31,3%), estrangulamento (23%) e esganadura (13%).
“Os ferimentos são causados por objetos que estão ao redor, no ambiente do crime. Uma faca da cozinha, uma ferramenta, fios, qualquer objeto que esteja a mão. O fato do agressor não ter arma de fogo não impede que o crime ocorra. E diferentemente de outros tipos de homicídios, onde só se usa arma de fogo ou só arma branca, no feminicídio é usado mais de um tipo de ação. Começa com uma agressão e segue. A não utilização de veneno ou de outro método que precisaria de uma premeditação, mostra que é tudo no calor da emoção, o agressor age quando atinge um ápice” explica Lima.
Em 75% dos casos analisados, os agressores provocaram ferimentos em mais de uma região do corpo da vítima. Em alguns laudos, os peritos identificam que há ferimentos anteriores a data da morte.
“O feminicídio não é um fato isolado. É um contínuo de violência. É o ápice da violência doméstica. Dentro desse contexto, muitos iniciam com agressões que acabam matando. Começa com tapa, soco e esganadura. A grande maioria das vítimas de feminicídio está sempre muito machucada” ressalta Débora.
Outro enfoque do trabalho foi mapear o local onde as mulheres estão mais vulneráveis. O estudo conclui que 87% dos casos aconteceram na própria moradia da vítima. Uma pequena parcela, de 4,5%, se deu no ambiente de trabalho da mulher e 3% na moradia no companheiro ou ex-companheiro.
“A maioria esmagadora das mortes é no ambiente doméstico. O ambiente mais perigoso para essa mulher é a casa dela” alerta a delegada.
As informações coletadas na amostra apontam que, independentemente da cultura, do estado e da região, o agressor age de forma muito similar em todo o país. Na avaliação do perito, os dados revelados reforçam como o feminicídio é um crime complexo de combater. Diferentemente de outras formas de violência, o assassinato de mulheres não pode ser evitado com repressão ou policiamento ostensivo, também não é possível entrar na casa da vítima sem uma denúncia, destaca Lima. E o mais grave: o agressor está convivendo com a vítima a maior parte do tempo.
Em meio a esse cenário, a delegada Débora entende que pesquisas como essa têm o papel de ajudar a qualificar o trabalho da polícia. A atual titular da Delegacia de Proteção ao Idoso e Combate a Intolerância de Santa Maria acredita que o debate sobre esse tipo de crime é justamente uma das formas de prevenção, provocando a reconstrução de valores da sociedade sobre o machismo. “Quanto mais se debate, mais se pensa e mais a sociedade se sensibiliza. A similaridade do modus operandi demonstra que trata-se de uma questão cultural, as características são as mesmas, o ambiente é o mesmo. A motivação é o machismo, tanto faz o Estado em que o crime acontece” afirma.
Para Lima, estabelecer as similaridades técnicas dos feminicídios pode qualificar o processamento da cena do crime, agilizando o trabalho dos peritos e dando mais robustez aos laudos que são peças fundamentais das investigações:
“A perícia criminal é o braço científico da segurança pública. Quanto mais preciso e com mais ciência for o trabalho do perito, mais irá auxiliar a polícia e a Justiça. Esse tipo de pesquisa traz mais solidez às nossas provas. Para combater a criminalidade também precisamos investir em ciência para que os servidores pesquisem mais e deem melhores respostas à população”.
Da redação, com informações do portal Diário Gaúcho