O Conselho Nacional de Justiça aprovou no início da semana uma recomendação para que os tribunais brasileiros gravem todos os atos processuais, sejam eles feitos de forma presencial ou online. A decisão atendeu um pedido feito pela OAB de Santa Catarina em novembro do ano passado, após virem a público as imagens da audiência do caso Mari Ferrer, em que a influenciadora é humilhada e agredida verbalmente pelo advogado de defesa do réu acusado de tê-la estuprado.
Se você não viu as cenas de constrangimento explícitas, veja aqui.
Conduta machistas e constrangedoras ainda acontecem e com mais frequência do que se imagina. Um exemplo está no fato de que só neste ano o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o uso da tese da “legítima defesa da honra” para defender e absolver feminicidas.
A imposição do segredo de Justiça nos processos, que tem como o intuito proteger as partes, tem o efeito colateral de fazer com que muitas mulheres não denunciem as violências que vivem nestes ambientes por temerem decisões desfavoráveis. Sem registros para corroborar as ofensas ouvidas, poucos casos ganham a repercussão. As cenas em que Mari Ferrer é ofendida e desrespeitada só receberam atenção porque foram gravadas e divulgas pela imprensa.
‘Show de horrores’
Sem registros ou gravações do que aconteceu em um tribunal no interior de Minas Gerais em 2018, Julia (nome alterado para preservar a identidade da entrevistada)define como “um show de horrores” a audiência de guarda do filho que teve com o ex-companheiro que a agrediu durante quase dez anos de relacionamento. Ela conta que só teve coragem de denunciá-lo alguns meses após a separação, mas hoje diz que a decisão não valeu a pena e que a Justiça é incapaz de protegê-la.
Julia conseguiu uma medida protetiva que perdeu a validade após seis meses e não foi renovada pela Justiça. Depois disso, ela chegou a ter a casa invadida pelo ex, mas ao denunciá-lo, foi questionada por um delegado porque não tinha colocado grades nas janelas.
Após a separação, Julia ainda enfrentou uma disputa judicial pela guarda do filho que teve com o ex-companheiro. Ela relata que ao longo de uma audiência, que durou mais de quatro horas, o promotor do Ministério Público que acompanhou ocaso a pintou como uma “mulher louca que estava criando confusão” e que ouviu do juiz que ela não era confiável por ser uma “mulher feminista”.
Ela diz ainda que outras mulheres já haviam denunciado seu ex por agressão, mas os relatos foram desacreditados na audiência, que terminou com uma sentença de guarda compartilhada, mas com prioridade para o pai.
“Eu saí dessa audiência como se tivesse revivendo ali todos os socos e chutes que tinha tomado durante anos do meu ex. Só de falar isso para você eu fico mal de novo. Fui vencida pelo cansaço”
Para ela, a gravação dos atos processuais é uma medida fundamental para inibir esse tipo de comportamento nos tribunais. “À medida que essas audiências passem a ser filmadas, talvez isso possa mudar. Alguém neutro tem que assistir isso. Talvez essa seja a única solução”.
‘Mães são iguais às mulas’
A violência muitas vezes não é cometida só pelo advogado da outra parte, mas também sai da boca de juízes. Um caso recente foi o do juiz Rodrigo de Azevedo Costa que disse estar “nem aí para a Lei Maria da Penha” e que “ninguém agride ninguém de graça” durante uma audiência virtual de um processo de pensão alimentícia com guarda e visita aos filhos menores de um ex-casal na Justiça de São Paulo.
A jornalista Renata Rodrigues também não esquece o que ouviu de um juiz em uma das diversas audiências que participou nos últimos oito anos, na disputa pela guarda dos filhos com o ex-marido, de quem se separou em 2013.
“Ele disse que não tinha pena das mães, porque as mães são iguais às mulas, quanto mais trabalho acumulam, mais gostam. Ouvi isso e tive que ficar calada, não pude falar nada”, afirma.
Ela relata que, ao longo dos anos, sentiu na pele a misoginia do sistema judiciário, mas que o tratamento era diferente a depender da localização do tribunal. As vivências mais hostis foram no interior.
“A gente é massacrada, enfrenta todo tipo de misoginia. Questionavam minha capacidade de ser mãe, sendo que quem cuidava dos meus filhos era eu. Você é acusada de ser infiel, de não cuidar da casa direito, de ser desequilibrada mentalmente”.
Com o tempo e sob orientação de uma nova advogada, desta vez uma mulher, Renata decidiu falar sobre suas vivências e, em contrapartida, ouviu de muitas mulheres relatos parecidos.
“Eu achava que, por causa do segredo de justiça, tinha que passar por isso calada. Acreditava que não podia falar porque seria penalizada. Quando comecei a compartilhar minha história, passei a ouvir a mesma coisa de outras mulheres e entendi que não era um problema individual meu”.
da redação, com informações do Globo