Essa é uma daquelas histórias que faz a gente perder a crença no ser humano. Do ódio intríseco (ou não) que os homens têm das mulheres ao ponto de arrumar desculpas como a maternidade para prejudicar o próximo. Em novembro de 2019, Jaqueline Lima, então com 18 anos, já tinha no currículo pódios no Pan de Lima e nas Olimpíadas da Juventude em Buenos Aires, resultados inéditos que a credenciaram como maior esperança brasileira no badminton para os Jogos Olímpicos de Tóquio em 2021. “Estou treinando muito para disputar os Jogos, sinto que evoluí por participar de mais torneios adultos”, disse a atleta em declaração à Confederação Brasileira de Badminton (CBBd) na época. Um ano e meio depois, a própria CBBd discordou de Jaqueline. Mesmo atendendo aos critérios esportivos de classificação ao Campeonato Pan-Americano da Guatemala, marcado para o fim de abril, a atleta não disputará a competição porque a confederação não bancará os custos de viagem e estadia. O motivo? Jaqueline teve uma filha no fim do ano passado e, segundo a CBBd, “permaneceu em inatividade por um longo período”, não atendendo às exigências físicas para competir em alto rendimento —um veto feito sem qualquer avaliação presencial com a atleta. A decisão tira as chances da mãe solteira e moradora de Teresina, no Piauí, de disputar as Olimpíadas neste ano.
A 100 dias da abertura dos Jogos, evento marcado pelo atípico adiamento e pelas incertezas sanitárias causadas pela pandemia de covid-19, as vagas para o badminton ainda não estão definidas. A classificação é definida por um ranking mundial, cuja pontuação é distribuída através de torneios por todo o mundo, e apenas a melhor dupla das Américas se classifica, seja nas femininas, masculinas ou mistas. Jaqueline e sua parceira, Samia Lima, só teriam chances de superar a dupla Rachel Honderich e Kristen Tsai, do Canadá, atualmente a única a sua frente no ranking feminino, caso disputasse o torneio na Guatemala. O mesmo acontece entre as duplas mistas, onde os também canadenses Joshua Hurlburt-Yu e Josephine Wu são os únicos da América a frente da piauiense e de Fabrício Farias. “Esse Pan-Americano é o mais importante”, explica a atleta, “porque é o que dá mais pontos e vai fechar o ranking”.
Ao lado de outros 13 atletas, Jaqueline foi incluída na convocação da CBBd para o torneio na Guatemala, divulgada pela entidade no dia 19 de março —a competição tem início em 29 de abril. Mas, logo abaixo a lista de convocadas, a piauiense foi nominalmente citada como exceção: “A atleta Jaqueline Lopes Lima, por definição da área de saúde e da comissão técnica da CBBd, não deverá participar desta competição, em função de ter permanecido em inatividade por longo período e estar retornando as atividades há pouco tempo. A CBBd toma esta posição visando a segurança da atleta neste momento. Caso a atleta opte em participar, a mesma deverá assumir todos os custos desta participação e também todas as responsabilidades referentes aos aspectos físico, saúde e segurança referente à covid-19”, diz a nota, concluindo que “a não participação da atleta neste momento, é a opção mais adequada e segura, preservando a atleta para o futuro, pois a mesma faz parte da equipe da CBBd, visando o ciclo 2024”. O documento é assinado pelo técnico Marco Vasconcelos, pelo coordenador de saúde André Lugnani, pelo coordenador técnico João Guilherme Chiminazzo e pelo presidente da CBBd, José Roberto Santini.
Jaqueline descobriu sua gravidez em junho de 2020, quando pausou seus treinamentos. Sua filha Lara Sophia, a quem sustenta sozinha com o salário recebido da Confederação e o Bolsa Atleta, nasceu em novembro. A atleta conseguiu voltar às quadras no primeiro dia de março de 2021. “Voltei logo porque estava visando esse torneio. Senti o físico no começo, mas não concordo com a justificativa da CBBd porque já me sinto em condição igual aos meus colegas, que voltaram aos treinos no início de fevereiro”, conta ela. Jaqueline ressalta que em nenhum momento foi feita uma avaliação sobre sua condição física. “Nem eu sei de onde eles tiraram essa conclusão [de que não estou apta]”, desabafa.
Para ela, a decisão da confederação tem outro motivo. “Acredito que foi só uma desculpa para tirar uma piauiense da tentativa de ir às Olimpíadas”, afirma. “Tem um certo preconceito pela região de onde vim, pelo fato de ser mulher e agora também por ser mãe”, completa. Praticante do badminton desde os oito anos, a moradora de Teresina descobriu o esporte em uma colônia de férias que aconteceu no ginásio de esportes ao lado de sua casa, quando desistiu do ballet por falta de professor. Precisou se mudar para São Paulo para seguir a carreira, mas voltou à capital do Piauí com o início da pandemia.
Mesmo sem o apoio da confederação, Jaqueline insistiu no sonho olímpico e conseguiu um patrocínio que financiaria sua ida à Guatemala. Então, teve a segunda surpresa: ela não foi sequer inscrita pela CBBd na competição e, com o imbróglio, havia perdido o prazo de inscrições, que terminou em 31 de março. “Fiquei querendo saber porque não iriam me bancar e nem me preocupei com a inscrição, achei que pelo menos isso eles tinham feito. Mas também não deu certo”, lamenta ela.
A piauiense prefere não fazer previsões para as próximas Olimpíadas, marcadas para Paris em 2024, contrariando a nota da Confederação a respeito do ciclo olímpico seguinte. “Não sei como vai ser depois dessa confusão. Eles ainda não vieram falar comigo”, diz. Mas tem uma certeza: não deixará a maternidade atrapalhar sua carreira. “Eu tenho um objetivo e estou conciliando os cuidados da minha filha com os treinos. Está sendo difícil, mas sei que estou indo bem”, completa a mãe.
Em contato com a reportagem, a assessoria de imprensa da Confederação Brasileira de Badminton ressaltou o que foi descrito na nota de convocação. Nas palavras da CBBd, “após o período de inatividade da atleta Jaqueline Lima (cerca de oito meses), foi constatado pela comissão técnica da CBBd que o tempo de preparação física (pouco mais de um mês) para a atleta retornar às quadras e participar do campeonato que será realizado na Guatemala não seria o suficiente considerando-se o nível que a competição exige”. Segundo a mesma, “a decisão de liberação de um (a) atleta para voltar às competições cabe à comissão técnica e a área médica da CBBd”, sem mencionar nenhuma avaliação física feita com a atleta.
“A entidade gostaria de contar com a atleta em todas as competições, assim como todos os demais atletas, desde que os mesmos estejam em nível adequado de competitividade”, continua a nota. A confederação também garante que informou todos os atletas a respeito do prazo de inscrição para o Campeonato Pan-Americano, comunicado que Jaqueline diz não ter recebido.
Por fim, a CBBd reitera que “repudia veementemente toda e qualquer forma de preconceito, seja de gênero, raça, exclusão social, capacitismo, credo, e é justamente pelas lutas em prol da equidade que a entidade compreende que os mesmos direitos e deveres devem ser direcionados a todos os atletas, sejam estes femininos ou masculinos, praticantes de badminton ou de parabadminton”.
Do El Pais Brasil