Você sabe o que é violência patrimonial? Esse tipo de abuso é uma das cinco formas de agressão contra a mulher previstas na Lei Maria da Penha. Quase invisível, muito normalizada e muito destrutiva, a violência patrimonial é tentativa de controlar a vida de alguém usando dinheiro, bens ou documentos. Infelizmente, há um apagão de dados e pouco debate no Brasil sobre o assunto.
O perfil no Instagram “Mas ele nunca me bateu”, junta relatos de mulheres que passaram por essa violência, e apesar de ser uma das mais comuns, há um apagão de dados e pouco debate no Brasil sobre o assunto.
“Ele tomou meu celular da minha mão, para eu prestar atenção nele. Pedi o celular de volta e ele arremessou na parede.” “Ele mandou eu resolver a po##a do Pix porque disse que não é obrigado pagar tarifa para transferir nada para mim.” “Meu ex-marido me levou na pizzaria e não me deixou comer. Disse que se eu quisesse, eu que pagasse, porque eu só queria gastar o dinheiro dele.” “Enquanto eu cuidava da minha mãe no hospital, meu ex trocou as fechaduras da casa.” ” Eu tinha que pegar dinheiro escondido para poder comprar absorvente ou shampoo”.
O problema ficou ainda mais evidente na pandemia de coronavírus, com as mulheres em isolamento social com os agressores e com o acúmulo de tarefas em casa.
Há um apagão de dados no Brasil
A violência patrimonial costuma vir acompanhada de outros tipos de violência. Agressões verbais ou físicas, contudo, são mais reconhecidas. Segundo o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, foram recebidas 3 mil denúncias de crimes contra a segurança financeira com vítimas do gênero feminino em 2020. O número é bem baixo se comparado, por exemplo, às denúncias de violência psicológica divulgadas pela pasta, 106,6 mil.
A plataforma Evidências sobre Violências e Alternativas (EVA), do Instituto Igarapé, reúne dados das polícias estaduais e das unidades de saúde de todos os estados brasileiros sobre violência doméstica. As polícias estaduais receberam 37,8 mil denúncias em 2019, 4% a menos do que no ano anterior. Já as unidades de saúde receberam 3,9 mil denúncias em 2018, 17% a mais do que em 2017. Esses são os dados mais recentes reunidos pela EVA.
“Como todos os registros de violência, esse é um dado muito subnotificado, porque depende da vítima ter a intenção de denunciar que isso acontece, ou até mesmo de se entender como vítima de uma violência, além de, claro, ter policiais e profissionais da saúde atentos à importância de fazer registro desse tipo de violência”, afirma Terine Husek Coelho, pesquisadora da plataforma.
A violência patrimonial é uma das grandes responsáveis por fazer as mulheres não saírem do ciclo dos relacionamentos abusivos, ainda mais quando elas dependem financeiramente do agressor, conforme Rebeca Servaes, presidente da Comissão OAB Mulher da OABRJ. A advogada diz que ter informação é o primeiro passo para identificar a situação de vulnerabilidade, conseguir autonomia financeira e sair da situação.
Como identificar a violência
Em geral, as mulheres têm dificuldade de identificar que são vítimas de violência patrimonial. “Vi vários casos da mulher confiar no homem e ele destruir financeiramente a vida dela. A mulher investe no homem por amor e acaba sem dinheiro nenhum”, conta Servaes.
Qualquer mulher está sujeita a sofrer violência patrimonial. O abuso acontece em todas as classes sociais, mas a população que mais sofre é a parcela de baixa renda, especialmente as mulheres negras. “Para elas, as consequências são mais graves, porque elas ficam sem dinheiro para comer. Recebemos vários relatos de roubo do auxílio emergencial por parte de ex-companheiros”, relata a advogada.
A perda da independência é o grande sinal de alerta, de acordo com Servaes. “A violência se manifesta de formas pequenas. O homem pede acesso à sua conta bancária e, quando vê, você não tem mais acesso a ela. Ele pede dinheiro emprestado e não paga”, exemplifica. “Começa de uma forma sutil e vai se agravando. Os comportamentos são repetitivos, o homem pede desculpas, diz que se arrependeu e você acha que ele vai mudar, mas ele não muda.”
Independência financeira é caminho, mas não só
Grande parte das mulheres entra nessa situação de violência patrimonial por não ter sua própria independência financeira. Por isso é tão importante que as mulheres tenham algum tipo de fonte de renda para não ter que pedir autorização para fazer as coisas. Quem tem a renda mantém o controle sobre como funciona a casa, na prática, e a outra pessoa fica em situação de vulnerabilidade.
No entanto, mesmo em relacionamentos em que a dependência financeira da mulher é uma escolha, ela precisa ter acesso ao dinheiro e ser respeitada. Não foi o que aconteceu com Sara, aos 90 anos, casada há 60 anos com José. Ela nunca trabalhou fora, mas criou os três filhos do casal e coordena a rotina da casa até hoje. O combinado é que ela ganharia uma mesada do marido aposentado para gastar com o que quisesse. Há quatro meses, ele não depositava o dinheiro e não explicava por quê.
“Chamei meus filhos e exigi que ele me pagasse e me desse acesso às nossas contas. Eu ajudei a construir tudo o que temos e tenho esse direito”, conta. “Por isso eu sempre digo para as minhas netas: tenham o dinheiro de vocês.”
Nesses casos de dependência financeira, é importante que a situação seja uma escolha, e não uma imposição, e que nenhuma parte seja diminuída, conforme explica a psicóloga Nathália Marques. “Você tem acesso aos seus bens? O outro não nega dinheiro quando vocês brigam? Não se acha mais importante que você na relação por ser o provedor da casa? É importante perceber se você está se sentindo confortável”, ensina.
Mônica Costa, educadora financeira e criadora do Grana Pretta, recomenda incentivar as mulheres a reservarem 10% do que ganham, mesmo que seja pouco dinheiro. “Pode ser um recurso que ela tenha em um momento de crise em um relacionamento abusivo. Se a mulher tem essa prática de fazer a reserva, consegue resistir mais. É uma estratégia de sobrevivência.”
Onde denunciar e buscar ajuda
Se você percebeu que é vítima desse tipo de violência ou conhece uma mulher que vivencia essa realidade, você pode buscar uma delegacia especializada de atendimento à mulher para denunciar ou ligar para a Central de Atendimento à Mulher, cujo telefone é 180, para obter informações.
Para denunciar, é essencial reunir provas, que podem ser documentos de transações financeiras e conversas em redes sociais ou WhatsApp e gravações.
Você também pode procurar a Defensoria Pública, a OAB do seu estado ou centros de atendimento gratuito ou a baixo custo que reúnem advogadas, como a Coletes Rosa, Rede Feminista de Juristas, Tamo Juntas e Themis.
Algumas alternativas para ter atendimento psicológico gratuito ou de baixo custo são o Intervir Mulher, Justiceiras, Escuta Ética e Mapa do Acolhimento.
com informações do portal Valor Econômico