Pelo menos 8,9% das mulheres brasileiras já sofreram algum tipo de violência sexual na vida, segundo dados da Pesquisa Nacional da Saúde (PNS), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde. As entrevistas foram feitas em 2019 por meio de visitas a mais de 100 mil domicílios selecionados por amostragem em todo o país.
Como a pesquisa questionou se a pessoa sofreu violência sexual alguma vez na vida, e não apenas no período imediatamente anterior à entrevista, foram contabilizadas histórias como a da gerente de operações Juliana*, de 30 anos, que foi vítima de uma agressão sexual na área comum do prédio onde morava quando tinha 14 anos.
“Esses três meninos vieram na minha direção, e um deles puxou meu braço para trás, o outro amarrou um moletom nos meus olhos, e outro sentou no meu colo e começou a se mover. Os três passaram a mão no meu peito, colocaram a mão por dentro da minha calcinha, me apalparam. E eu gritava e chorava, mas ninguém veio na minha direção. Eu não sei quanto tempo durou, mas para mim parece que durou uma eternidade”, conta.
Um dos trunfos da pesquisa, segundo especialistas em violência contra a mulher, foi utilizar duas perguntas distintas para identificar os diferentes casos de violência sexual. Isso faz com que os dados obtidos incluam desde casos de estupro até situações como a vivida por Juliana, que seria enquadrada no crime de importunação sexual.
Uma das perguntas do questionário é se a pessoa entrevistada “foi tocada, manipulada, beijada ou teve partes do corpo expostas contra a vontade”. Essa questão foi respondida positivamente por 79,7% das vítimas de violência sexual, sendo 76,1% das mulheres e 89,3% dos homens.
A segunda pergunta sobre o tema avalia se a pessoa “foi ameaçada ou forçada a ter relações sexuais ou quaisquer atos sexuais, contra a vontade”. Neste caso, 50,3% das vítimas disseram ter vivido a situação, sendo 57,1% das mulheres e 32,2% dos homens.
Com base nessas respostas, o estudo estima que 9,4 milhões de pessoas de 18 anos ou mais de idade foram vítimas de algum episódio de violência sexual em algum momento da vida.
O número corresponde a 5,9% da população, mas o percentual de vítimas é muito maior entre as mulheres: 2,5% dos homens sofreram agressões sexuais na vida, contra 8,9% das mulheres brasileiras. Só nos 12 meses que antecederam as entrevistas, 1,2 milhão de pessoas foram vítimas de violência sexual, dentre as quais 72,7% eram mulheres (885 mil).
A maior parte das agressões sexuais contra mulheres foi perpetrada por companheiros, namorados, cônjuges ou ex-parceiros, citados em 53,3% das respostas. A violência sexual ocorreu, em 61,6% dos casos, na residência das próprias vítimas.
Para Silvia Chakian, promotora de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo, os dados comprovam que a violência sexual é resultado de um cenário de desigualdade de gênero porque ela afeta de maneira muito mais profunda a vida de meninas e mulheres.
“A violência sexual, além de ser uma das mais graves violações de direitos humanos, é também a que mais escancara a desigualdade [de gênero], porque as vítimas são meninas e mulheres, na sua imensa maioria”, afirma Chakian.
“Estamos falando de uma violência de gênero, que é fruto de uma relação de poder e submissão que foi criada e reforçada historicamente pela sociedade. É essa relação de poder que acarreta tanto desequilíbrio, e que ainda induz a muita violência sexual”, completa.
Consequências da violência sexual
A pesquisa também mostrou que a violência sexual gera consequências psicológicas: 60,2% das vítimas declarou que a agressão provocou “medo, tristeza, desânimo, dificuldades para dormir, ansiedade, depressão ou outras consequências psicológicas”.
Consequências físicas como hematomas, cortes, fraturas, queimaduras ou outras lesões físicas ou ferimentos foram citadas por 19% das vítimas.
Segundo a psicóloga Daniela Pedroso, que há 24 anos é especialista no atendimento a vítimas de violência sexual, as consequências da agressão podem ser imediatas, mas também podem perdurar por anos. Para Pedroso, ao perguntar se a violência ocorreu alguma vez na vida do entrevistado, a pesquisa do IBGE revela abusos que muitas vezes não são contabilizados.
A especialista afirma que é comum que, ao tratar as consequências psicológicas de uma agressão, a mulher revele que foi vítima de outros casos de violência sexual no passado.
“A gente entende a violência sexual como um fenômeno transgeracional, ou seja, que atravessa diferentes períodos da vida de uma mulher. É cada vez mais comum que, quando essa mulher vítima de uma agressão chega para o atendimento, ela traga também o relato daquele abuso que ela sofreu lá atrás na infância, que ela nunca contou pra ninguém, que nunca foi tratado”, explica.
Anos antes do assédio que viveu aos 14, a gerente de operações Juliana* já havia sido vítima de outro episódio de violência sexual. Aos 12 anos, durante uma viagem no metrô em São Paulo, um homem se masturbou na sua frente e ejaculou sobre ela.
“Eu estava voltando do colégio de metrô, sentada, e um cara parou na minha frente. Eu estava lendo um livro e, quando tirei o olho da página, vi que ele estava se masturbando na minha frente. Eu era uma criança, nem sabia o que estava acontecendo, e foi pavoroso. Eu não assimilei o que tinha acontecido”, relembra.
A percepção da violência, para a psicóloga Daniela Pedroso, é prejudicada pela falta de discussão sobre o que caracteriza abuso sexual.
“Às vezes as próprias vítimas não se reconhecem como tal, porque a gente fala sobre violência sexual, mas não nomeia as coisas, e aí fica essa percepção incorreta de que estupro é quando existe a penetração, de que só isso é violência sexual”, afirma.
“Estamos falando de uma violência que pode deixar marcas profundas que podem se manifestar a curto ou a longo prazo. Então é preciso buscar ajuda e entender que a culpa nunca é da vítima”, avalia a promotora Silvia Chakian.
“Não é exigido que haja penetração ou um toque mais invasivo: todo esse comportamento que hoje chamamos de importunação sexual, tudo isso é violência sexual. Então é importante que essa gama mais extensa seja abordada nas pesquisas. Tudo isso é violência, tudo isso tem consequências, e tudo precisa ser notificado”, completa.
Fui vítima de estupro. O que fazer?
O que a vítima de estupro deve fazer imediatamente após o crime?
Chamar a polícia ou ir até uma delegacia. Lá, será registrado um Boletim de Ocorrência e a vítima será encaminhada em seguida a um hospital para realizar exames e receber medicamentos anti-retorvirais (para impedir a contaminação pelo vírus da AIDS, por exemplo) e a pílula do dia seguinte. O registro do BO é importante para que a vítima possa em seguida fazer o exame de corpo de delito, realizado no Instituto Médico Legal (IML).
Muitas vezes, a vítima é encaminhada para o hospital antes de ir a uma delegacia, principalmente quando está ferida. Mas é importante que o Boletim de Ocorrência seja registrado e o exame de corpo de delito feito para dar início às investigações.
Aqui em João Pessoa, o hospital de referência para vítimas de estupro é o Instituto Cândida Vargas. Menores de 14 anos devem ser encaminhadas para o Hospital Infantil Arlinda Cabral.
da redação, com informações do G1
Leia mais:
Números do horror: Brasil registra 14 estupros coletivos por dia