Referência no combate à covid-19, em 2020, a Nova Zelândia passou a habitar o imaginário de milhões de pessoas em seus momentos de tédio ou desespero em quarentenas forçadas ao redor do mundo. Ali, apenas 26 pessoas morreram em decorrência da pandemia. Considerada a artífice dos bons resultados sanitários do país, a primeira-ministra Jacinda Arden foi comparada a seus pares, como o ex-presidente americano Donald Trump e o mandatário brasileiro Jair Bolsonaro, cujos países registraram juntos mais de 1,1 milhão de mortes por infecções do novo coronavírus.
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O desempenho notável de Jacinda e de outras governantes mulheres durante a pandemia, como as líderes de Bangladesh e Taiwan, instalou uma dúvida na cabeça de quatro economistas brasileiros. “A gente decidiu investigar se ter uma mulher na gestão da crise sanitária poderia levar a uma diferença das políticas públicas adotadas e causar desfechos melhores do que ter um homem nessa mesma função”, explica o economista Raphael Bruce, do Insper.
Junto com colegas da Universidade de São Paulo e da Universidade de Barcelona, Bruce assina o recém-publicado estudo “Sob pressão: a liderança das mulheres durante a crise da covid-19”, ainda sem revisão por outros cientistas. A pesquisa oferece a primeira evidência de que ter mulheres no poder durante uma pandemia ajuda a salvar mais vidas do que ter um homem na cadeira.
Onde elas mandam: 44% menos mortes, 30% menos internações
No trabalho, Bruce e seus colegas usam os mais de 5.000 municípios do Brasil como uma espécie de laboratório. Primeiro, os pesquisadores selecionaram apenas os 1.222 municípios que, nas eleições de 2016, tiveram eleição à prefeitura realizada em turno único e em que o primeiro e o segundo colocados fossem de gênero diferente. Assim, limitaram a análise a municípios de até 200 mil habitantes.
Depois refinaram ainda mais a amostra, de modo a considerar apenas aqueles em que a corrida eleitoral foi acirrada — e a margem de vitória menor do que 10% do número de votos para a candidata ou para o candidato —, algo que ocorreu em cerca de 700 localidades.
Assim, conseguiram chegar o mais próximo possível da reprodução das condições de um experimento controlado: em pesquisas de vacinas, por exemplo, a definição de quais participantes receberão uma dose do imunizante a ser testado ou uma dose de placebo é feita por sorteio. Isso evita a possibilidade de que o viés de algum pesquisador na seleção das pessoas e distribuição das doses possa influenciar no efeito causado pelo placebo ou pela vacina.
Aqui na Paraíba, a primeira cidade a atingir 95% da imunização da população foi o município de Marcação, que não por acaso, tem uma mulher à frente da prefeitura, Lili Oliveira.
Do mesmo modo, os economistas olharam para um dado grupo de municípios pequenos e médios, comparáveis entre si econômica e demograficamente, em que a chance de haver um homem ou uma mulher na cadeira de prefeito era praticamente aleatória, quase um acaso.
O passo seguinte foi verificar os dados de mortes e internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) de cada um desses 700 municípios, em 2020, no Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), do Ministério da Saúde. Como a distribuição e aplicação de testes para o novo coronavírus variou muito pelo Brasil, os dados de SRAG têm sido adotados como forma de driblar eventuais distorções por subnotificação de casos e óbitos de covid-19.
A conclusão foi que municípios com prefeita tiveram, em média, 25,5 mortes por 100 mil habitantes a menos do que aqueles em que os chefes do Executivo local eram homens — uma diferença de 43,7% na mortalidade.
Em relação às hospitalizações, os registros mostram uma redução média de 30,4% em internações por 100 mil habitantes nos municípios com prefeitas em relação ao mesmo dado de cidades com prefeitos.
Elas obrigam mais o uso de máscara
Em uma extrapolação dos resultados, os autores afirmam que se metade dos 5.568 municípios do Brasil fossem liderados por mulheres, seria possível esperar que o país tivesse nesse momento 15% menos mortes do que o total acumulado, de mais de 540 mil. Ou, dito de outra forma, mais de 75 mil pessoas ainda estariam vivas agora. Hoje, menos de 13% das prefeituras do Brasil são comandadas por mulheres.
“É preciso sempre lembrar que esses dados são válidos para esses municípios pequenos e médios que foram analisados, mas fizemos esse cálculo para mostrar o tamanho da relevância do fenômeno quando a gente pensa em definição de políticas públicas”, afirma o pesquisador Alexsandros Cavgias, da Universidade de Barcelona.
Mas, afinal, o que essas mulheres fizeram de diferente dos seus pares homens que poderia explicar a menor gravidade da pandemia nas cidades delas? Como o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou, ainda no começo da pandemia, em 2020, que os gestores municipais tinham autonomia para adotar medidas em suas cidades, a resposta deveria estar em como prefeitos e prefeitas administraram a crise. Por isso, os pesquisadores verificaram se as prefeituras ordenaram o uso de máscaras no município, limitaram a circulação em transporte público, proibiram aglomerações, adotaram exigência de cordão sanitário e limitaram o funcionamento de negócios não essenciais.
E descobriram que, de modo geral, municípios com mulheres no comando adotaram em uma frequência 10% maior esse tipo de medidas não farmacológicas de combate à pandemia. No caso das máscaras, o número de prefeitas que determinou seu uso obrigatório superou em oito pontos percentuais o dos pares homens. Na obrigatoriedade de testes para entrar na cidade, mulheres superaram homens em 14 pontos percentuais. E na proibição de aglomeração, em cinco e meio pontos percentuais.
O que explica a diferença entre a gestão delas e deles?
No estudo, os pesquisadores contemplam as possibilidades de que as mulheres tenham tomado decisões diferentes — e obtido resultados melhores na pandemia — por alguns motivos. Avaliam, por exemplo, se a idade menor ou maior de homens e mulheres no cargo poderia ser uma determinante. Não houve, no entanto, diferença significativa quando se comparou os perfis das prefeitas e de seus pares homens.
Outra hipótese era de que a diferença fosse resultado de um perfil ideológico das mulheres. As soluções para a pandemia tornaram-se bandeiras políticas de determinados grupos. A direita conservadora, liderada por Bolsonaro, condenou reiteradamente a adoção de medidas como uso de máscara e restrição do comércio e de aglomerações. “Mas a verdade é que quando olhamos para os dados sobre posicionamento político-partidário, as mulheres prefeitas tendiam a ser até um pouco mais conservadoras do que seus pares homens”, afirma Bruce.
O estudo ainda analisa se as prefeitas poderiam ser, com mais frequência, profissionais da saúde, o que poderia impactar suas decisões políticas nessa área. Isso também não se comprovou verdadeiro. Tampouco as prefeitas tomaram medidas nos anos anteriores que as tivessem deixado em melhor situação que os governantes homens quando a pandemia chegasse, como o aumento de leitos ou de investimento na saúde.
Do mesmo modo, embora as mulheres prefeitas tivessem, em média, escolaridade mais alta do que os homens prefeitos, a pesquisa mostrou que a adoção de medidas mais rígidas e a redução de mortes e internações não variava conforme o nível educacional, o que também levou ao descarte do fator como possível explicação.
“A verdade é que por enquanto apenas sabemos o que não causa a diferença, mas não conseguimos determinar o que está por trás do fenômeno”, afirma Bruce.
Para Jessica Gagete-Miranda, pesquisadora de políticas públicas da Università’ degli Studi di Milano Bicocca, na Itália, que leu o estudo a pedido da BBC News Brasil, a explicação para o fenômeno pode estar em uma característica frequentemente associada ao gênero feminino na literatura científica: a maior aversão ao risco.
“Já existem pesquisas mostrando que mulheres, de forma geral, aderiram mais a medidas não farmacológicas de combate à covid-19, como distanciamento social e uso de máscara. Se mulheres de forma geral fazem isso, mulheres prefeitas também devem fazer e essas últimas têm poder político para exigir que a população também o faça”, diz Gagete-Miranda.
Sem espaço no jogo político
Segundo o economista Sergio Firpo, do Insper, que leu o artigo de Bruce, Cavgias e seus colegas, o mérito da pesquisa está em estabelecer a causalidade entre haver mulheres no poder e haver menos mortes naquela cidade em decorrência da pandemia — o que pode pautar a ação de eleitores e agremiações políticas no futuro.
“É uma falha não ter uma explicação para o fenômeno no trabalho. Mas mesmo que não saibamos o que provoca essa diferença, seria interessante que os partidos e os eleitores observassem esse tipo de coisa para escolher suas apostas, seus candidatos. O ponto é que existem diferenças na gestão entre homens e mulheres e isso é estratégico”, diz Firpo.
Ele cita um trabalho feito pela economista brasileira Fernanda Brollo que concluiu que as mulheres tendem a se envolver em menos casos de corrupção do que os homens. Usando metodologia semelhante à de Bruce e Cavgias, ela cruzou os resultados de eleições de 400 municípios em 2000 e 2004 com as auditorias federais nessas mesmas cidades. Brollo descobriu que os municípios governados por prefeitas apresentavam entre 29% e 35% menos chances de se envolverem em condutas corruptas do que as de seus pares homens.
Isso, no entanto, não garantiu a elas qualquer vantagem competitiva no sistema político. Durante os períodos analisados, as prefeitas receberam entre 30% e 55% menos aportes de recursos eleitorais para suas campanhas. A probabilidade de serem reeleitas ficou cerca de 20% abaixo da dos candidatos do sexo masculino.
No Brasil, um sistema de cotas foi criado em 1995 para garantir que os partidos políticos destinem um percentual de candidaturas a mulheres em eleições parlamentares proporcionais. Ou seja, não existe qualquer previsão de reserva de vagas para mulheres na disputa para o Executivo — e o funcionamento do sistema de cotas atual tem se mostrado pouco eficiente para aumentar a presença delas em cargos eletivos.
Brollo questiona se, caso as mulheres tivessem condições competitivas semelhantes às dos homens na política, ou se um sistema de cotas fosse adotado no Executivo para assegurar maior espaço político a elas, tais diferenças em relação à corrupção ou à qualidade da gestão de crise ainda se manteriam. “Sabemos que a política brasileira ainda é bastante dominada por homens. Isso pode fazer com que as exigências para se eleger uma mulher sejam mais altas do que aquelas para eleger um homem e que apenas mulheres mais qualificadas acabem ganhando as eleições (ou chegando perto de ganhar)”, diz Gagete-Miranda.
Essa é uma possibilidade que os próprios autores do trabalho dizem ser plausível. De outra forma, Bruce também coloca a questão.
“Talvez as mulheres prefeitas acabem tomando melhores decisões sob pressão porque já enfrentam mais pressão e desafios adicionais na carreira política. Mas esse é um aspecto não observável da realidade”, conclui.
da BBC Brasil