Ódio e negligência: o que faz do Brasil o país líder em violência contra pessoas trans

Roberta da Silva morreu no dia 9 de julho, aos 32 anos. Ela era uma mulher trans e vivia em situação de rua em Recife (PE). Roberta foi queimada viva por um adolescente, que despejou álcool e ateou fogo em seu corpo enquanto ela dormia perto de um terminal de ônibus na região central da cidade. Ela ficou internada por duas semanas, chegou a ter os braços amputados, mas não resistiu.

Sua morte se somou a outros três assassinatos de mulheres trans ocorridos em Pernambuco no intervalo de um mês. As histórias destas mulheres foram interrompidas de forma violenta — assim como a de Dandara dos Santos, travesti espancada, torturada e morta a tiros no Ceará em 2017 — e suas mortes fazem parte de um padrão de assassinatos de pessoas trans, caracterizados por práticas de tortura e requintes de crueldade.

A violência que chocou há quatro anos, quando Dandara foi morta, continuou se repetindo e só em 2020 tirou a vida de 175 mulheres trans e travestis no Brasil. Mas os crimes contra a população trans não são monitorados ou divulgados por órgãos governamentais de segurança pública de maneira consistente. Na 15ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, oito das 27 unidades federativas não informaram quantos LGBTQIAP+foram mortos em seu território em 2020.

As organizações do movimento LGBTQIAP+ tentam preencher esse vácuo. Há quatro anos, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) contabiliza as mortes de pessoas trans a partir do que a imprensa noticia e do que é notificado pelas redes de contatos de ativistas espalhados pelo Brasil. De 2017 a 2020, ao menos 641 pessoas trans foram mortas.

O perfil das vítimas segue parecido: quase a totalidade das mortes noticiadas é de mulheres trans e travestis, a maior parte dos crimes é cometida em espaços públicos, e muitas das vítimas são trabalhadoras do sexo, em situação precária.

A idade média das vítimas foi de 29,5 anos em 2020, mas não são raros os casos de menores assassinadas. Em 2021, uma menina trans de 13 anos foi morta no Ceará, se tornando a mais jovem vítima do transfeminicídio do país, de acordo com a Antra.

A associação identificou, desde que iniciou o monitoramento, um ciclo de exclusões e violências familiares, escolares e sociais vividas desde a infância que tem papel fundamental no processo de precarização e vulnerabilização de pessoas trans.

“A família, ao expulsar a jovem trans de casa, se torna esse primeiro ambiente de exclusão e dá início ao ciclo” diz Bruna Benevides, autora do levantamento e secretária de articulação política da Antra. Ela explica que esse ciclo leva as pessoas trans à marginalização e, consequentemente, à morte, seja por falta de acesso a direitos fundamentais, sociais e políticos, ou, ainda, pela omissão do Estado em garantir o bem-estar social dessa população.

Para Benevides e outros pesquisadores da área, a ausência de políticas públicas desenhadas para garantir a cidadania desta população e sua efetiva inclusão social, seja na escola, nos serviços de saúde ou no mercado de trabalho, têm papel fundamental nesta exposição à violência e no quadro de mortalidade violenta intencional.

“A gente já conhece o perfil das pessoas que são assassinadas, mas o que as coloca como alvos preferenciais dessa violência é a negligência, o abandono do Estado, que não reconhece a cidadania dessas pessoas e nem consegue garantir uma efetiva participação delas em qualquer política de assistência”, afirma Benevides. “Isso, combinado a esse levante fundamentalista antigênero, forma um ambiente propício para a legitimação dessa barbárie”.

Para a pesquisadora e ativista Viviane Vergueiro, a solução passa por olhar além dos números de assassinatos e entender que a violência que atinge pessoas trans no Brasil é mais ampla:

“Sempre que os dados dessa violência mais acintosa, mais revoltante, vem à tona, a gente acaba ficando muito preso a eles. A gente costuma ficar restrito à violência individual, à agressão física. Mas essas manifestações não são o retrato mais amplo da violência sofrida pela população trans”, afirma a pesquisadora, nomeando entre as formas de violência, a falta de acesso a serviços de saúde efetivamente inclusivos, que levam, por exemplo, muitas pessoas trans a optar por fazer o processo de hormonização por conta própria, ampliando riscos. “Isso nos faz pensar: quantas dessas mortes não contabilizadas seriam evitáveis?” questiona.

Ela pondera que, ainda que o Brasil não seja um país que criminalize a transexualidade e que a população trans tenha programas de saúde específicos e o reconhecimento do direito a retificação do prenome e gênero garantido pelo Supremo Tribunal Federal, a violência segue alarmante.

“A existência da violência se dá apesar dos pequenos tímidos avanços institucionais que tivemos nos últimos anos. Se não há o suporte de elementos socioculturais, o efeito dessas políticas públicas é limitado” afirma Vergueiro.

“Existe muito estigma relacionado sobre o que é ser trans. Propagam a ideia de que ameaçamos a ordem natural, que estamos tentando destruir a família, que somos pessoas depravadas, desajustadas, instáveis. Todos esses elementos acabam criando uma ideia de que não podemos existir, que temos que ser aniquiladas”, reforça Benevides.

Essa ideia se reflete nos requintes de crueldade presentes nos assassinatos, explicam a pesquisadoras. Roberta foi queimada viva por um menor no centro de uma capital. Dandara foi espancada, levou pauladas e foi morta a tiros por dez homens, entre eles adolescentes, em plena luz do dia.

“É importante reforçar o quanto essa violência denuncia esse ódio por nós. E não é um ódio praticado só pelo Estado, que se omite, mas que tem sido passado de geração para geração, de pai para filho, nos programas policiais de televisão, tem sido ensinado nos púlpitos das igrejas. É um ódio que tem sido publicamente disseminado e aceito e isso precisa parar”, completa a ativista da Antra.

A impunidade também tem papel importante na perpetuação do ciclo de violência, afirmam as pesquisadoras.

“A impunidade cumpre um papel político e social. O medo cumpre essa função de nos jogar contra a parede e depender do punitivsmo para ter alguma resposta. Mas é difícil confiar nas instituições que até pouco tempo atrás estavam empenhadas na nossa destruição”, afirma Vergueiro, lembrando o empenho da polícia em perseguir travestis e homossexuais durante a ditadura militar, como revelou a Comissão Nacional da Verdade.

“Os assassinatos não são respondidos na sua maior parte e quando essa vítima chega no sistema de segurança pública, ela costuma ser tratada como uma potencial suspeita”, completa.

 

do portal Celinas

 

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