N*, de 26 anos, relata que aguardava na fila para fazer um ultrassom no ambulatório de violência sexual do Hospital Pérola Byington, no centro de São Paulo, nessa quarta-feira (18), quando um grupo de mulheres abordou ela e as demais pacientes do recinto para entregar Bíblias e absorventes. O hospital, pertencente à Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, é o principal serviço onde se realiza o aborto legal no Brasil.
A estudante de engenharia está no segundo mês de gestação e procurou o serviço do hospital para interromper a gravidez, resultado de um estupro, violência que se deu dentro de uma relação abusiva. A legislação brasileira autoriza a realização do procedimento em casos de gravidez decorrente de estupro, risco de vida à mulher ou (por decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal) gestação de feto anencéfalo.
N* não conseguiu identificar quem eram as mulheres distribuindo as edições da Bíblia. “Elas não falaram nada, só entregaram os livros e os absorventes. Acho que eram enfermeiras. Vestiam uniformes e pareciam estar trabalhando no hospital. Chegaram várias caixas, não dava pra entender se cheias de absorvente ou bíblias. Eu achei estranho porque eu estava lá para acessar meus direitos e geralmente essas religiões, católica e evangélicas, abominam qualquer direito da mulher. Eu sou uma pessoa de fé, acredito numa força maior, que vem do amor, e não que pune e prejudica apenas as mulheres. Achei muito arcaico, nada a ver um hospital distribuir isso”, disse N* em condição de anonimato.
Segundo a ginecologista Alessandra Giovanini, médica do ambulatório de violência sexual, a prática de distribuição de Bíblias é proibida dentro do Pérola Byington. Ela afirma que nunca viu isso acontecer no local e tampouco foi informada de algo do tipo por outros funcionários ou pacientes. A ginecologista foi coordenadora do ambulatório em 2018, após a saída do obstetra Jefferson Drezett. Desde então quem assume o posto é André Malavasi.
Quem primeiro recebeu a denúncia de N* foi o projeto Milhas pelas Vidas das Mulheres, criado em 2019 para orientar e, quando necessário, arrecadar fundos para mulheres que desejam realizar o aborto seguro e legal dentro ou fora do Brasil. “O Milhas acompanha as mulheres durante as consultas e procedimentos. Ela nos mandou essas mensagens hoje, nos intervalos das consultas e dos exames que passou. Ler isso nos indignou a tal ponto que postei um verdadeiro desabafo nas nossas redes. Porque a escalada está aí na nossa cara: a criança sendo chamada de assassina na porta do hospital, o plano de saúde pedindo permissão do marido pra instalar DIU na mulher, a médica do Hospital das Clínicas alegando objeção de consciência para instalar DIU ou receitar pílula do dia seguinte…”, diz a criadora do Milhas, a documentarista Juliana Reis.
Para a antropóloga Debora Diniz, uma das principais pesquisadoras no tema do aborto no Brasil, a entrega de Bíblias fere a laicidade do Estado. “Isso não pode acontecer em nenhum hospital público do país. Não importa qual a crença da mulher. O atendimento em saúde pode oferecer conforto, cuidado, atenção ao sofrimento, mas não precisa ter interferência religiosa. Me parece abuso de poder e interferência indevida nas formas de cuidado de uma mulher muito vulnerável e em busca de socorro. O que há na Constituição é a garantia da assistência religiosa se a pessoa assim o quiser. Por exemplo, se quiser rezar enquanto está doente, tem que ser garantida a ela um padre. É ao revés, para a proteção da sua fé”.
Debora continua, dizendo que além da resposta jurídica, não pode se esquivar do argumento ético: “Uma menina que sofreu estupro é alguém com medo, desamparada até. Precisa chegar em um serviço de aborto legal e ter sua identidade protegida, sua privacidade cuidada. A intromissão de uma mensageira da fé, com uma bíblia como um signo de um julgamento, não é um ato de cuidado, mas de intimidação. Saber quem distribui a bíblia é um caminho para interromper grave violação do direito de intimidade e cuidado às meninas e mulheres. Se é uma prática instituída pelo hospital como rotina, ou se é inventada pelas visitadoras da fé, a responsabilidade é igualmente devida aos diretores dos hospitais. É a eles que cabe que cada mulher tenha seu direito inalienável de ser cuidada sem ser importunada pelo proselitismo religioso de outros”.
Resposta da Secretaria de Saúde
“O Hospital Pérola Byington lamenta o desconforto e repudia qualquer atitude contrária à liberdade de consciência e de crença quanto o caráter laico de instituições públicas, previstos em Constituição. A unidade respeita as escolhas individuais de seus usuários, e justamente por isso não permite a distribuição de panfletos ou livros como o citado pela reportagem dentro da unidade. A direção está reforçando as orientações aos seus profissionais e voluntários da capelania hospitalar, que devem seguir as normas estabelecidas pelo hospital. Além disso, lembra a todos que disponibiliza ouvidoria para acolher qualquer paciente ou usuário, acolhendo dúvidas e queixas. Os contatos podem ser feitos pelo e-mail [email protected] e telefone (11) 3232-9021 ou 9000“.
da Revista Marie Claire