Ícone dos esquerdomachos, Charles Bukowski é um dos autores mais cultuados da literatura moderna. Passados 17 anos de sua morte, o “velho safado” começou, finalmente, a ter sua obra esmiuçada pelo viés feminista e contestada por mulheres que encheram o saco.
Sua vida de bebedeira, inadequação social e fracassos românticos continuam sendo romantizados pelos fãs. Mas sua representação misógina das mulheres, visíveis em todos os seus livros e aparições públicas, se tornou um fardo difícil de digerir. Já não era sem tempo.
Este descontentamento ficou claro no último mês, quando a roteirista e produtora americana Melissa Turkington compartilhou um achado em seu Twitter. Ela havia comprado em um sebo uma coletânea de poemas de Bukowski, que veio com anotações da antiga dona. A misteriosa leitora marcara passagens de alguns poemas, com tiradas como “Vai fazer terapia, idiota”, “Esse cara é doente”, e “Eu vou queimar este livro hoje”.
As notas dialogavam de forma irônica com os versos. A uma queixa de Bukowski sobre o amor não correspondido de uma mulher (“ela sabia o que queria e não era eu”), a leitora respondeu: “e por que ela deveria?”. Em outra passagem, em que ele lamenta que irá “morrer sozinho”, ela anotou com sua caneta azul: “provavelmente foi melhor assim”. Por fim, ainda deu um conselho sentimental ao finado autor: “Como ele não percebe que a maneira como trata as mulheres em geral (…) é o que faz ele nunca encontrar um relacionamento saudável?”
Compartilhado por cerca de 11 mil pessoas, o tuíte de Melissa Turkington gerou um efeito catártico em outras mulheres, como se elas finalmente se sentissem liberadas para falar mal do autor de obras como “Notas de um velho safado”. A rede se encheu de conteúdo antibukowski, desde histórias de quem sofreu por namorar homens que celebravam o estilo de vida do autor, até escritoras criticando-o em forma de poema. E a discussão foi tão longe acabou chegando à misteriosa dona da caneta azul, agora identificada como Katherine Esters.
“Eu mesma já tive experiências muito parecidas com as destas mulheres” diz Melissa Turkington. “Passamos a vida lendo homens brancos como Bukowski com a impressão de que não era permitido a nós dizer o que pensamos deles. Quando tinha uns 20 e tantos, namorei um cara que era fã do Bukowski e falar mal do autor para ele seria como fazer um ataque pessoal. Porque ser um fã de Bukowski era parte de sua personalidade.”
Exatamente um ano após a comemoração de seu centenário, aspectos problemáticos de Bukowski já recebem um destaque tão grande quanto seus méritos literários. A revisão tem uma explicação simples: muitos dos ex-jovens leitores e leitoras que se identificavam ele nos anos 2000 agora são quarentões que já não romantizam aspectos como beber até cair e viver na sarjeta. A nova onda feminista, surgida em 2013, também trouxe novas perspectivas, tanto no debate sobre os seus livros quanto em relação à sua personalidade (afinal, poucos escritores são tão difíceis de separar a pessoa da obra como ele).
A servidora pública Aline Chermont , 46 anos, é o caso clássico da leitora que descobriu Bukowski lá pelos 20 e poucos e só passou a renegá-lo depois que a pauta feminista entrou em seu radar. Para ela, as anotações compartilhadas no Twitter são simplesmente “perfeitas”.
“Bukowski era quase um frenesi e estava na moda na turminha” recorda ela. “Acho que a ficha caiu quando li o livro autobiográfico dele, “Misto-Quente”, que explica muito do que ele veio a ser. Ele foi um jovem incel (abreviatura da expressão em inglês “involuntary celibates”, para designar homens que não conseguem se relacionar com mulheres) e descarregou a raiva no mulherio.
Bukowski já escreveu que só o homem é capaz de sentir amor, pois “a mulher é perita em traição, tortura e condenação”. Um trecho do documentário “Born into this”, em que o escritor agride sua ex-companheira Linda Lee, volta e meia reaparece nas redes, causando revolta. Em um artigo para a revista n+1, a editora americana Dayana Tortorici contou nunca ter esquecido o seu desconforto ao ler “Cartas na rua”, o primeiro romance do autor. “Senti-me horrível com a maneira como o narrador descreve as pernas grossas das feiosas. Foi a primeira vez, acredito, que me senti rejeitada por um livro com o qual buscava me identificar”.
Distância do mito
Até o culto de seus fãs passou a ser questionado. A humorista Ademara tem um vídeo viral em que apresenta um leitor de Bukowski como o típico esquerdomacho tóxico (procurada pela reportagem, a artista disse que não se sentia à vontade para dar entrevista sobre o assunto). Autor de “Modos de macho & modinhas de fêmea”, o jornalista e escritor Xico Sá divide com Bukowski o lado boêmio e um gosto pela literatura “safada”. Mas, ainda que defenda o talento do autor de romances como “Mulheres” e coletâneas de poemas como “O amor é um cão dos diabos”, ele já tomou distância do mito em torno de sua personalidade.
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“Aquele culto ao personagem caricato do Velho Safado larguei faz tempo” revela Xico. “Não tenho mais idade nem fígado pra isso.”
Embora seja uma bukowskiana daquelas de visitar o túmulo do ídolo, a gaúcha Clara Averbuck admite que certos fãs masculinos nutrem uma relação tóxica com o escritor. A autora de “Máquina de pinball” lembra que, ela também, já teve namorado fã do velho safado.
“Existe essa de buscar modelos que legitimem certos tipos de comportamento, como o homem atormentado, o artista, o sensível” diz Clara . “O homem médio adora um outro homem que suavize e ajude a arrumar uma desculpa para os comportamentos cagados. Só que as mulheres andam cada vez mais sem paciência para isso. Se hoje em dia um homem chegar em mim citando Bukowski, já penso: “Ô, meu querido, não né?” Mas quando eu tinha 22 anos, conheci um dos grandes amores da minha vida conversando sobre quem? Bukowski.”
Clara continua admirando os livros do poeta, e acredita que algumas críticas precisam levar em consideração o contexto social em que o autor foi criado.
Mesma opinião da atriz e poeta Elisa Lucinda, que nos anos 1990 protagonizou o espetáculo “Bukowski, bicho solto no mundo”, feito a partir de poemas do americano nascido na Alemanha. Ela acredita que hoje, com o que se sabe sobre abusos psicológicos e violência contra a mulher, talvez a peça fosse diferente em alguns aspectos. O que em nada muda a natureza “revolucionária” do trabalho do poeta, acredita Lucinda.
“Essas críticas à misoginia fazem todo sentido hoje” diz Lucinda. “Mas é preciso uma observação mais profunda. Bukowski nunca foi um herói. Ele é um anti-herói, que viveu como um fodido em um mundo ruim. A misoginia dele faz parte da sua miséria emocional”.
da redação, com informações do Globo
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