Após três anos sem sucesso em tratativas extrajudiciais para conter superlotação de parturientes na rede hospitalar da capital, o Ministério Público Federal na Paraíba (MPF/PB) ajuizou ação civil pública para que a Justiça Federal determine à União, ao estado da Paraíba, ao município de João Pessoa e à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), administradora do Hospital Universitário Lauro Wanderley (HULW), que providenciem a necessária regulação, administração e estrutura da rede de maternidades do estado. A ação, ajuizada em 7 de julho de 2021 e distribuída para a 3ª Vara Federal, busca garantir o respeito aos direitos fundamentais de gestantes, puérperas e recém-nascidos.
O MPF pediu à Justiça Federal concessão de tutela (de urgência e/ou de evidência) para determinar ao estado da Paraíba e ao município de João Pessoa que adotem providências para garantir às gestantes paraibanas acesso imediato a leitos públicos ou privados (caso faltem leitos públicos) nas maternidades do estado. O acesso deve ser concedido conforme regramentos hospitalares próprios do SUS (e não leitos improvisados em macas e cadeiras em corredores ou similares), implementando, inclusive, fluxo de regulação para a rede privada, nos termos da Lei Estadual 11.758, de 31 de julho de 2020 (que dispõe sobre a internação de parturientes na rede privada em caso de inexistência de vaga na rede pública).
Outro pedido da ação é que estado e capital registrem todas as pacientes em excesso diante do número de leitos regulares ofertados pelas maternidades que administram (Hospital Frei Damião, Hospital Edson Ramalho e Instituto Cândida Vargas), e formalizem os pedidos de transferência dessas pacientes aos núcleos de regulação das demais maternidades ou à Central de Regulação de leitos da capital. Diante da inexistência de vagas, devem peticionar ao órgão central da Secretaria de Estado da Saúde da Paraíba (SES-PB) para providenciar a acomodação das pacientes em leitos privados, conforme Lei Estadual 11.758/2020.
O MPF também pediu que, em 90 dias, estado e município de João Pessoa efetivem estudos e medidas conjuntas com outros municípios e gestores dos estabelecimentos que compõem a sua rede própria e o Hospital Universitário Lauro Wanderley, por meio da Ebserh, para detecção definitiva das causas de superlotação em alguns serviços (seja por insuficiência de leitos, equipes, insumos ou qualquer outra causa); e adoção de providências para sanar tais problemas, mediante checagem da efetiva oferta de leitos (com disponibilização de equipes completas), além de eventual redefinição de referências e responsabilidades e/ou ampliação de número de leitos na rede pública da capital, inclusive, com planejamento integrado da construção de Centros de Parto Normal e Casas da Gestante, Bebê e Puérpera e/ou de outras medidas consideradas adequadas.
Mais um pedido na ação foi a concessão de tutela de urgência ou de evidência para determinar à União e à Ebserh que participem dos estudos e medidas conjuntas com as demais instâncias estaduais e municipais do SUS para viabilizar o cumprimento do papel da Ebserh na rede de atendimento do SUS (Rede Cegonha, inclusive, com retomada do planejamento integrado da construção de Centros de Parto Normal e Casas da Gestante, Bebê e Puérpera, além do Centro Obstétrico ou de outras medidas consideradas adequadas.
Além disso, o Ministério Público ainda pediu a cominação de multa de R$ 5 mil, por dia de atraso, para cada uma das entidades rés, bem como multa de R$ 500,00, por dia de atraso para cada um dos respectivos gestores, para o caso de descumprimento dos prazos determinados pela Justiça, caso dê provimento aos pedidos ministeriais. Por fim, o MPF pediu a procedência final dos pedidos e a condenação dos réus ao pagamento de indenização de R$ 100 mil, por dano moral coletivo decorrente do tempo em que houve falta de vagas suficientes para as gestantes e seus bebês, “as quais foram atendidas em condições inadequadas e de risco a sua vida e integridade física, em violação aos seus direitos mais fundamentais”, encerra a ação.
Lei estadual garante atendimento- A Lei Estadual 11.758 foi aprovada pela Assembleia Legislativa da Paraíba e sancionada pelo governo estadual ainda em julho de 2020, num momento em que se tinha notícia que a taxa de mortes maternas brasileiras, considerando suspeita ou a confirmação da covid-19, já era maior do que a de oito países juntos. A lei estadual, proposta pela deputada estadual Estela Bezerra, determina a internação de parturientes na rede privada em caso de inexistência de vaga na rede pública, por meio de lista única nas maternidades da rede pública e privada, com o objetivo de garantir que nenhuma parturiente no estado fique sem atendimento durante a pandemia. Gestantes e parturientes foram incluídas pela Organização Mundial de Saúde como grupo de risco para a covid-19.
Superlotação – A atuação do Ministério Público Federal no caso teve início em 2018, a partir do recebimento pelo MPF de documento encaminhado pelo Hospital Universitário Lauro Wanderley, no qual se relatavam dificuldades operacionais vivenciadas pela Unidade Materno Infantil do hospital em razão da ausência de regulação no encaminhamento das gestantes de alto risco. A partir desse documento, o MPF instaurou inquérito civil, no âmbito do qual foram realizadas diversas tratativas, ao longo dos últimos três anos, envolvendo a Ebserh, a SES-PB e os municípios de João Pessoa, Cabedelo e Bayeux.
Os dados obtidos durante a apuração dos fatos apontaram para uma superlotação diuturna nas maternidades da capital. O hospital universitário informou que não conseguia transferir gestantes por falta de vagas em outros serviços. Em 2020, durante a pandemia da covid-19, ainda em curso, houve um aumento de 11% no número de partos (mais de 200 partos por mês), na maternidade do HULW, sem considerar os atendimentos na triagem e outros procedimentos obstétricos, relata o MPF na ação civil proposta.
Uma das consequências desse aumento é o número crescente de pacientes que necessitam ser internadas, mesmo sem vagas na maternidade, segundo relatado pelo HULW, de modo que os corredores das suas instalações vêm sendo ocupados por macas que servem como “vagas extras” para o excesso de pacientes, fato já noticiado pela imprensa local. “Ademais, aportou nos autos a informação de que, recentemente, chegou-se ao extremo de haver 16 pacientes internadas em macas, dentre essas, pacientes soropositivas, hipertensas graves, diabéticas e bebês recém-nascidos que ficam em berços no corredor, aumentando o risco de queda e a exposição das pacientes, apesar de haver ali vigilância”, registra a ação ajuizada.
Recomendação sem resposta – Em dezembro de 2020, o MPF e o Ministério Público da Paraíba recomendaram ao governo estadual e à prefeitura de João Pessoa que adotassem providências imediatas para garantir às gestantes acesso a leitos públicos. A recomendação incluiu a implementação do encaminhamento das gestantes para a rede privada, previsto na Lei Estadual 11.758, de 31 de julho de 2020, quando verificadas situações como superlotação. Até a publicação dessa notícia, estado e prefeitura ainda não tinham dado nenhuma resposta aos órgãos ministeriais sobre a recomendação.
No primeiro semestre de 2021, o MPF realizou diligência no hospital universitário e constatou a existência de superlotação e suas consequências: paciente nos corredores sem qualquer privacidade; risco de queda para mãe e o filho, por estarem em uma maca que não oferece segurança; aglomeração nos corredores, pacientes, filhos, acompanhantes; quantidade de berços existentes que não suprem a demanda da maternidade; quantidade de macas existentes que não suprem a demanda da maternidade; existência de apenas uma sala de obstetrícia para partos, levando a equipe de saúde a improvisar novos espaços, com partos em locais inadequados; falta de medicamentos, dentre outras.
Devolução de recursos federais – Apesar da evidente necessidade de expansão de leitos para as parturientes, o hospital universitário deixou de receber recursos para a construção de Centro de Parto Normal (CPN), projeto que havia sido encaminhado ao Ministério da Saúde pelo próprio HULW. No entanto, uma portaria do Ministério da Saúde, publicada em fevereiro de 2020, listou nove propostas de obras na Paraíba, desabilitadas no âmbito do Programa Rede Cegonha, cujos recursos haviam sido repassados ao Fundo Estadual de Saúde, condição que sujeita a Paraíba a devolver os recursos financeiros ao Fundo Nacional de Saúde, acrescidos da correção monetária prevista em lei.
Segundo o inquérito civil do MPF, a perda dos recursos pelo HULW decorreu de aparente falha burocrática também atribuível ao hospital. O centro de parto perdido integra o conjunto de cinco centros previstos no Plano Estadual de Saúde 2016-2019 para a Paraíba. O plano também previa a construção de seis Casas da Gestante, Bebê e Puérpera (CGBP) que seriam distribuídas no estado. Diante da não implantação das obras, o Ministério Público Federal questionou o estado e o município do João Pessoa, mas inda não obteve resposta.
Para o MPF, “certamente, a instalação dessas novas estruturas de serviço poderia ensejar a redução da pressão por leitos nas maternidades da capital, mas, contraditoriamente ao que se deveria esperar da gestão do SUS, o Ministério da Saúde solicitou a devolução de montantes destinados à construção de CPN, CGBP e ambiências, conforme notícia divulgada pela imprensa local”, argumenta o órgão ministerial, na ação, ressaltando que, do ponto de vista dos princípios da moralidade e eficiência da gestão pública, e diante do quadro de superlotação de maternidades na Paraíba, “não se mostra admissível que o estado, municípios e o HULW devolvam recursos federais que poderiam ter auxiliado a financiar a construção de unidades de acolhimento para parturientes, puérperas e recém-nascidos, desafogando a pressão sobre leitos de maternidade hoje disponíveis”.
Ao MPF, o município de João Pessoa informou que os repasses federais para construção de um Centro de Parto Normal no Instituto Cândida Vargas teriam sido insuficientes para implementação de seu projeto executivo. No entanto, o município não esclareceu detalhes sobre possibilidades de redimensionamento do projeto, inclusive com aporte de recursos adicionais próprios ou do estado.
Recomendação internacional – A insegurança na maternidade vivenciada pelas gestantes paraibanas atesta a omissão dos entes públicos e aponta o descumprimento da recomendação específica, expedida ao Brasil pelo Comitê Sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (Committee on the Elimination of Discrimination against Women – Cedaw), aponta o MPF na ação. A recomendação foi feita no caso da morte da jovem negra, residente na Baixada Fluminense, Alyne da Silva Pimentel Teixeira, grávida de 6 meses, que morreu em 2002, em decorrência da falta de atendimento adequado. Ela se tornou o primeiro caso brasileiro de mortalidade materna decidido por um órgão internacional de direitos humanos e resultou na responsabilização do governo brasileiro pela morte de uma gestante que poderia ser evitada.
Conforme o artigo 12 da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (adotada pela Organização das Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979), os Estados-Partes garantirão à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactância. Em consonância, a Recomendação Geral nº 24, do Comitê Cedaw, (promulgada no Brasil pelo Decreto nº 4.316/2002), destaca em seu Parágrafo 27 que “há um dever dos Estados-Partes em garantir às mulheres o direito à maternidade segura e aos serviços de emergência obstétrica e que deveriam alocar o máximo de recursos disponíveis para este fim”.
“Embora o Brasil tenha apresentado relatório sobre cumprimento à referida recomendação, o teor da presente ação revela o seu descumprimento, outra razão que enseja a integração da União ao polo passivo da lide, como ente com dever de buscar fomentar e coordenar medidas de cumprimento de decisões de organismos internacionais sobre direitos humanos, válidas no âmbito interno”, justifica o MPF, na ação civil pública.
O Ministério Público Federal comunicou a violação da recomendação do Cedaw na Paraíba ao Conselho de Direitos Humanos do Estado da Paraíba, à Diretoria de Assuntos Internacionais do Ministério da Cidadania e ao gabinete da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, para que adotem as providências cabíveis quanto ao descumprimento da recomendação do ente internacional.
da assessoria do MPF