Tomado pelo bolsonarismo, Conselho Federal de Medicina passou de defensor da autonomia feminina a algoz de gestantes e mulheres que não desejam engravidar.
Dificultar o acesso à contracepção.
Abrir fogo contra a luta pelo fim da violência obstétrica.
Diminuir as chances de mulheres que recorrem à reprodução assistida terem filhos.
Essas são algumas das vitórias conquistadas nos últimos anos pelo Conselho Federal de Medicina no campo da (des)igualdade de gênero. Juntas, elas nos mandam uma mensagem clara: a atuação do CFM é nociva às mulheres.
Embora 46,6% dos médicos do Brasil sejam mulheres, no conselho da categoria os homens reinam em absoluto. Eles são 20 entre os 28 conselheiros efetivos do órgão e ocupam a presidência e as três cadeiras de vice. Elas, portanto, estão presentes em meros 28,6% das posições efetivas. Na gestão anterior, as mulheres correspondiam a 10,7% do conselho. Não é de surpreender, portanto, que todas as resoluções prejudiciais à população feminina – e transmasculina – mapeadas neste texto tenham sido assinadas por homens.
Mas é principalmente o viés de extrema direita adotado pela diretoria do CFM que ajuda a explicar como um órgão que, em 2013, se manifestou favoravelmente à descriminalização do aborto até a 12ª semana, dizendo-se defensor da autonomia da mulher, chegou ao ponto de aprovar procedimentos forçados em gestantes seis anos depois.
Sob as gestões de Carlos Vital Tavares Corrêa Lima (2014-2019) e Mauro Luiz de Britto Ribeiro (2019-2024), as pessoas grávidas se tornaram alvo de ataques recorrentes do conselho de profissionais que deveriam garantir sua integridade física e mental.
A primeira investida marcante veio em 23 de outubro de 2018, quando o CFM emitiu um parecer assinado por Ademar Carlos Augusto, que segue como conselheiro efetivo pelo estado do Amazonas, atacando a luta contra a violência obstétrica. Para o órgão, o abuso não é uma violação grave do corpo e dos direitos das mulheres, mas sim “uma agressão contra a especialidade médica de ginecologia e obstetrícia” que contribui para a “demonização progressiva” da obstetrícia.
Já no início de 2019, o Cremerj, Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, voltou seus esforços contra instrumento considerado fundamental para a garantia do bem-estar da gestante na hora de dar à luz: o plano de parto. Em 23 de janeiro, o Cremerj publicou uma resolução que proibia a “adesão, por parte de médicos, a quaisquer documentos, dentre eles o plano de parto ou similares, que restrinjam a autonomia médica”. Em 21 de janeiro do ano seguinte, o Cremers, conselho do Rio Grande do Sul, “corroborou na íntegra” o documento do conselho fluminense.
O CFM, responsável por fiscalizar a atuação dos conselhos regionais, não apresentou nenhuma objeção. Vale ressaltar aqui que o conselheiro federal pelo estado do Rio de Janeiro, o ginecologista Raphael Câmara, é um notório defensor da abstinência sexual como forma de contracepção e da agenda antiaborto, além de ter se provado um negacionista durante a pandemia. E, como o Intercept mostrou em fevereiro deste ano, é Câmara, secretário de Atenção Primária à Saúde do governo Bolsonaro, quem faz o elo entre a classe médica e o bolsonarismo.
Os ataques ao termo violência obstétrica acabaram repercutidos pelo Ministério da Saúde de Bolsonaro, então comandado por Luiz Henrique Mandetta, e reforçados pelo CFM em maio de 2019, quando foi publicada uma nota em defesa da abolição do termo violência obstétrica, que “agride a comunidade médica” e “conturba a relação médico-paciente”. O documento não foi assinado por um conselheiro específico, mas sim pelo Conselho Federal de Medicina, à época ainda presidido por Corrêa Lima.
O presidente do CFM levou o ódio à luta contra os abusos que uma em cada quatro mulheres sofre no parto (a maioria delas, negras, indígenas ou vivendo com deficiência) a outro patamar meses depois, quando tentou legalizar a violência obstétrica na resolução de nº 2.232 de julho de 2019. No documento, assinado por ele, afirmava-se que a recusa informada de uma grávida a qualquer procedimento poderia ser ignorada caso fosse considerada um “abuso de direito em relação ao feto”. Ou seja: a gestante poderia ser forçada a passar por intervenções indesejadas, porque o bem-estar do feto estaria acima do dela.
Em dezembro daquele ano, quando o órgão já estava nas mãos de Mauro Ribeiro, o Judiciário derrubou o parágrafo da resolução que permitia o abuso.
Não bastassem os golpes contra as gestantes, o CFM decidiu ampliar sua má atuação na área dos direitos sexuais e reprodutivos, complicando tanto a vida de mulheres que não desejam engravidar quanto daquelas que sonham com uma gravidez.
A notícia de que enfermeiros passariam a ter permissão para inserir o DIU de cobre em pacientes no SUS, divulgada em 2018, foi comemorada pelas mulheres que desejavam colocar o dispositivo intrauterino, contraceptivo com mais de 99% de eficácia que deve ser inserido no útero por profissionais qualificados. Afinal, o aumento do número desses profissionais significava uma diminuição no tempo de espera para conseguirem se proteger de uma gravidez com um método que não envolve hormônios e não depende da ação das usuárias para funcionar.
Mas ela não foi bem recebida pelo CFM, que considerou a decisão do Ministério da Saúde de Temer uma afronta aos médicos, vistos pelo conselho como os únicos detentores do direito de colocar o DIU, apesar de sua inserção se tratar de um procedimento ambulatorial simples. Em dezembro de 2019, com o lobby do órgão sob Corrêa Lima e Mauro Ribeiro, o Ministério da Saúde de Bolsonaro emitiu uma nota técnica que revogou a permissão dada anteriormente aos enfermeiros.
Em janeiro de 2020, o Conselho Nacional de Saúde recomendou que a nota fosse anulada. Segundo o CNS, “a oferta universal de métodos para planejamento reprodutivo é um dos modos de garantir os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, sendo o DIU um método contraceptivo de alta eficácia”.
O órgão reforçou ainda que “a redução das desigualdades, por meio do acesso aos serviços de saúde, é uma das premissas da Atenção Primária à Saúde e o envolvimento de profissionais qualificados para ações de planejamento sexual e reprodutivo aumenta a possibilidade das mulheres de obterem acesso aos métodos contraceptivos”. Mas a proibição do MS segue em vigor. Desde então, o CFM já foi visto comemorando decisões judiciais que reforçavam a proibição, como foi o caso de uma notícia publicada em seu site em agosto de 2020 sobre o município de Penedo, em Alagoas.
Em junho deste ano, foi a vez de as pessoas com dificuldades de engravidar levarem uma solapada do Conselho Federal de Medicina. Uma resolução do CFM, assinada pelo representante do estado de Rondônia, Hiran Gallo, atualizou “critérios para técnicas de reprodução assistida no Brasil”. Entre as mudanças, estão a criação de um número máximo de embriões gerados em laboratório (oito), o que não existia até então, e a de limites de transferência de embriões por idade – dois para quem tem até 37 anos e três para quem passou dessa idade.
Especialistas ouvidos por O Globo destacaram que a decisão do CFM dificulta uma fertilização in vitro bem-sucedida, especialmente para mulheres acima de 40 anos. Ouvida pelo jornal, Hitomi Nakagawa, presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, afirmou que o número ideal de embriões é de pelo menos 15, e o novo limite torna a chance de uma mulher de 40 anos engravidar “quase nula”.
Além disso, as mudanças encarecem o processo, que, antes da resolução, já custava em torno de R$ 20 mil. Isso porque o descarte de embriões passa a só ser permitido com uma decisão judicial, não bastando mais apenas a autorização dos envolvidos, o que deve acarretar em gastos com advogados.
Segundo O Globo, mulheres em tratamento criaram um abaixo-assinado contra a norma e entidades de reprodução assistida enviaram uma carta ao CFM. O conselho, porém, não se sensibilizou. “Ao mesmo tempo, técnicos ouvidos pela reportagem acreditam em motivação ideológica por trás da mudança”, destacou a reportagem.
Feita essa pequena retrospectiva da guerra do CFM contra as mulheres e homens trans e levando-se em conta seu posicionamento durante a pandemia de covid-19, não me restam dúvidas de que a atuação do órgão em todas as suas frentes é, sim, movida pelas crenças ideológicas de sua diretoria.
matéria especial do The Intercept, de autoria da jornalista Bruna de Lara