Justiça para quem? Réus de classe alta se livram de penas mais severas em casos de violência doméstica e feminicídio

 

No dia 17 de outubro desse ano, Kezia Stefany da Silva Ribeiro, de 21 anos foi assassinada pelo então namorado, o advogado José Luiz de Britto Meira Júnior. Eles namoravam há dois anos, e de acordo com um irmão de Kézia, ela queria terminar o relacionamento por “privação de liberdade”, além da rotina de brigas entre o casal. Depois de atirar na jovem, José Luiz de Britto Meira Júnior a levou até um hospital e fugiu. O crime aconteceu no bairro de Rio Vermelho, área nobre de Salvador.

Em denúncia feita à polícia, ainda durante a madrugada do dia 17, moradores contaram ter visualizado um homem arrastando uma mulher desacordada pelos corredores, deixando um rastro de sangue no caminho.

José Luiz de Britto foi preso dia 18, e aí começa o grande nó e a prova definitiva de a justiça no Brasil funciona sim, mas só para quem pode pagar por ela.

José Luiz, acusado de feminicídio, aguarda inquérito ‘preso’ em condomínio de luxo

A prisão domiciliar decretada pelo Tribunal de Justiça da Bahia ao advogado José Luiz de Britto Meira Júnior gerou um sentimento de impunidade em pessoas que acompanham o desfecho do caso. Sob a justificativa de que não há cela especial no estado, o homem aguarda julgamento em seu condomínio de alto padrão no bairro Rio Vermelho, em Salvador. Apesar de ser uma medida permitida pelo judiciário, especialistas apontam que, no Brasil, tanto em casos de violência doméstica e feminicídio quanto em outros crimes, suspeitos de classe média-alta conseguem se esquivar de penas mais severas, visto que têm maior possibilidade de arcar com advogados que os assistam integralmente.

José Luiz teve a prisão preventiva decretada e, por ser advogado, tem direito a ficar preso em sala de estado-maior antes da condenação definitiva, conforme estabelece o Estatuto da Advocacia. Até a conclusão do inquérito, ele só poderá sair de casa para tratar problemas de saúde, com a devida justificativa, ou para atender aos chamados judiciais que responde.

De acordo com a promotora de Justiça na Bahia, Sara Gama, que atua como coordenadora da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid), em casos de tentativa ou ato consumado de feminicídio, por exemplo, os processos judiciais costumam se prolongar até a conclusão das investigações, que varia em cada caso. Um dos motivos é porque as leis brasileiras permitem que o réu apresente inúmeros recursos antes do julgamento. Nestes casos, quanto mais condições financeiras de arcar com profissionais que esgotem esses direitos, mais chances de se defender.

“Logicamente, aqueles agressores que não possuem uma condição financeira para custear um advogado, acabam ficando mais vulneráveis no sentido de que os julgamentos acabam se encerrando com mais rapidez. Então, não se pode negar o peso da desigualdade econômica, mas também não se pode atribuir a isso uma impunidade por parte do sistema de segurança pública de justiça, visto que atuamos seguindo a lei” explica Sara.

A promotora recordou um caso de feminicídio de repercussão nacional, ocorrido no ano 2000, que representa os benefícios que um acusado pode ter a partir do custeio de recursos judiciais.

O jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, de 63 anos, assassinou a também jornalista Sandra Gomide com dois tiros nas costas. Detido, ele passou apenas sete meses na prisão porque em março de 2001 conseguiu um habeas corpus para aguardar em liberdade o julgamento, realizado apenas em maio de 2006.

O júri condenou Pimenta Neves a 19 anos de prisão. Contudo, ele entrou com recurso e conseguiu esperar a decisão em liberdade. Sete meses depois, a Justiça negou o recurso, mas reduziu a pena para 18 anos. O jornalista não se apresentou e foi considerado foragido. Só que três dias depois, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) suspendeu a ordem de prisão. Até que no dia 24 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou o último recurso e determinou a prisão. Em setembro de 2013, ele conseguiu ir para o regime-semiaberto, e, em 2015, para o regime aberto. 

“Durante muito tempo se tinha um temor muito latente de que aquele processo (contra Pimenta Neves) pudesse prescrever em razão justamente dos inúmeros recursos usados para procrastinar a pena. Infelizmente, a gente ainda vive com essa situação porque temos dentro da legislação brasileira o que chamamos de violência de gênero” afirma Sara Gama.

Uma pesquisa divulgada no ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública também aponta que a raça é fator determinante no acesso à defesa. Em 2019, a proporção de negros no sistema carcerário cresceu 14%, enquanto a de brancos diminuiu 19%. Um dos motivos apontados é a desigualdade do sistema carcerário, onde brancos dependem menos da Defensoria Pública, quando comparado às pessoas negras.

Benefícios concedidos a quem tem ensino superior

Em relação ao benefício concedido à réus graduados — permitido somente durante a prisão preventiva —, a advogada criminalista Izabella Borges explica que a lei estabelece que pessoas com ensino superior, advogados, delegados, magistrados, membros do Ministério Público, parlamentares, vereadores, prefeitos, governadores, membros do Tribunal do Júri, entre outros, têm o direito de ficar na cela especial enquanto perdurar o julgamento. O tratamento diferenciado dado a esses suspeitos é o direito a uma cela com tamanho consideravelmente maior. Com o processo concluído e pena estabelecida, o réu passa para uma cela comum.

Ela ressalta ainda que a falta de sala de estado-maior não garante, de forma automática, que o réu cumpra a prisão preventiva em casa. No entanto, caso seja definida, há mecanismos de monitoramento da pessoa sob custódia, como o uso das tornozeleiras eletrônicas, que permite ao juiz saber se houve algum movimento que exceda os limites de espaço determinados.

“Existem discussões nos Tribunais sobre essa possibilidade (de prisão domiciliar), já que no processo penal não é possível interpretar a lei de maneira que seja prejudicial ao réu em razão de um problema estrutural do próprio estado. Mas, na prática, podemos dizer que o tratamento recebido por certas pessoas em nosso sistema prisional escancara o seletivismo, já que diferencia, claramente, o tratamento que recebido por uma pessoa sem estudos de outra que teve maiores oportunidades na vida. Em minha opinião, esse sistema segrega pessoas e viola o princípio da isonomia, consagrado em nossa Constituição Federal” explica a advogada.

Izabella ressalta, contudo, que o fato de ter ensino superior não ameniza a punição do acusado, visto que “o Código Penal estabelece que na aplicação de pena serão considerados os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, mas a escolaridade e a classe social jamais poderão ser argumentos para motivar uma pena maior”.

da redação, com informações do Globo

 

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